15.12.07

A Estante

Tadeu estava enlouquecido com a tese de mestrado. Quanto mais lia a respeito do tema, mais sua pesquisa aumentava, e encontrava outro viés, e mais outro, e mais outro... Resolveu ligar para seu orientador.
- Alô!
- Professor? É o Tadeu.
- Tudo bem?
- Tudo. E com o senhor?
- Tava. Até você me chamar de senhor. Já te falei.
- Foi mal. Bom, eu tava querendo perguntar se o senhor... ou melhor, se você tem mais algum material ou alguma fonte que possa me ajudar lá na tese. Tô ficando meio perdido.
- Tá tendo dificuldade de cercar o tema, né?
- É. É bem por aí.
- Por que você não vem até a minha casa. Talvez você encontre alguma coisa na minha biblioteca.
- Não quero te atrapalhar.
- Imagina. Mi casa, su casa.
Tadeu achou meio estranho o tipo de ajuda oferecida pelo professor. Mas não estava em condições de julgar nenhum tipo de auxílio. Muito menos estava em posição de recusar qualquer coisa que fosse. Juntou suas coisas na mochila e foi para a casa de seu orientador.
Tadeu já havia estado ali em outras ocasiões. Uma vez para receber orientações, quando o professor tinha estado doente e tinha se ausentado da universidade por algumas semanas. Em outras duas ocasiões, havia estado lá para duas festas organizadas pelo professor. No entanto, nunca havia entrado na tal biblioteca. Nem mesmo sabia que ela existia. Sempre imaginava que o professor tivesse um enorme acervo de livros na área, mas nunca algo tão amplo que pudesse ser chamado de biblioteca.
A casa era bem grande e arejada. A porta de entrada dava para uma sala de estar enorme com um sofá em "L" e vários outros móveis. Uma televisão de plasma coroava a decoração. O professor o recebeu na sala. Vestia apenas um robe e tinha uma taça de vinho branco nas mãos. Tadeu achou um pouco estranho, mas pensou, bom, é domingo e o pobre homem também é filho de Deus.
O professor sorria muito enquanto guiava Tadeu até a biblioteca. Falava sobre os quadros na parede, comentava a decoração da casa... Tadeu apenas o seguia e ia respondendo com monossílabos as perguntas trivais que aqui e ali o professor o fazia.
- Bem, é aqui.
O professor abriu duas portas pesadas de madeira que ficavam no final de um corredor. A biblioteca na verdade era um escritório. Havia uma enorme mesa de madeira no centro, com uma cadeira bem alta. Esta mesa estava coberta de papéis com anotações que Tadeu mal conseguia decifrar. No canto direito havia uma outra mesa com um computador e à esquerda um aquário imenso com um único peixe dourado. Tadeu pensava na ironia que era ver aquele peixe, cuja memória mais antiga datava de menos de 5 segundos atrás, nadando sozinho naquele infinito de água. No fundo da sala havia uma enorme estante de livros. O pé direito da casa era bem alto, e a estante ia do chão até o teto, de ponta a ponta da parede recheada de livros. Próximo a porta de entrada, havia um sofá de dois lugares.
O professor entrou na frente de Tadeu e se sentou no sofá. Colocou a taça de vinho sobre uma mesinha de canto que havia ao lado do sofá e ajeitou o robe, como se este fosse um traje de gala.
- Bom, acho que você deve encontrar algo de útil aqui. Se não se importa, ficarei aqui com você enquanto procura. Esta sala tem um valor muito alto pra mim e não gosto de deixar ninguém aqui dentro sem que eu esteja junto.
- Claro. Não tem problema algum. Só não queria te atrapalhar em nada, nem interromper o seu descanso.
- Não se preocupe. Eu não tenho nada para fazer hoje mesmo. Enquanto você estuda, vou ler um pouco. - e pegou um livro que estava no chão, perto do sofá.
Tadeu finalmente encarou a estante. Era realmente gigantesca. Assustava só de olhar. Começou a zanzar de um lado para o outro lendo o que havia escrito nas capas dos livros. Tudo parecia ser útil e pensava, se houvesse uma maneira de eu simplesmente sugar toda a informação da cabeça do professor... Tadeu pensava que, obviamente, o professor teria lido todos aqueles livros. Além disso, conhecia a tese de Tadeu como ninguém. Provavelmente, conhecia-a melhor do que o próprio Tadeu. Por que ele simplesmente não sugeria um autor, um volume?
Tadeu olhava e olhava para a estante e simplesmente não conseguia decidir que exemplar puxar de lá. Pensava que deveria decidir rápido. Não queria tomar muito tempo de seu orientador. Mas ao mesmo tempo achava que seria julgado pela escolha que fizesse. Se eu pegar o livro errado, ele pode desistir de me ajudar, pensava. Arriscou uma olhadela por cima do ombro. Queria ver se o professor estava lendo de verdade ou se apenas o observava com seus olhos de juíz. O professor parecia bem absorvido pela estória.
Tadeu voltou-se novamente para a estante. Foi e voltou umas duas vezes até o final da parede coberta de livros até que viu algo que chamou sua atenção. O problema é que o livro estava na parte mais alta da estante. Não havia nenhuma escada à vista. A cadeira próxima a mesa tinha um estofado de couro impecável que realmente não combinava com sapatos sujos. Antes que tivesse alguma idéia ou criasse coragem para interromper o professor e perguntar como ele alcançava os livros mais altos, ouviu o homem dizer:
- Tadeu, preciso ver meu almoço. Quase me esqueci. Estava assando um peixe. Já volto.
Tadeu pensou, é minha chance. Primeiro pensou em tirar os sapatos e usar a cadeira mesmo. Mas previu que, mesmo descalço, seu peso deixaria marcas naquela cadeira tão sofisticada. Então decidiu usar a mesa. Agarrou-se a ela e tentou puxá-la para perto da estante. Mas a maldita mesa pesava toneladas e o máximo que conseguiu foi movê-la alguns centímetros ao preço de um barulho irritante de madeira atritando com madeira. Deixou um pequeno arranhão no assoalho. Sua idéia não daria certo. Precisaria de pelo menos mais uma pessoa para ajudá-lo a aproximar a mesa da estante. E ainda assim achava que o estrago no chão seria grande.
- Merda!
Tentou trazer a mesa de volta para o lugar. Gotas de suor começavam a brotar em sua testa e suas costas. Nem tanto pelo esforço físico, mas pelo nervosismo.
Olhou para a estante mais uma vez e percebeu que as prateleiras eram bem grossas. É minha única saída, pensou. Tirou o sapato do pé esquerdo e o colocou na segunda prateleira, mais ou menos na altura de seu joelho. Deu um impulso e se agarrou à prateleira mais alta com as duas mãos enquanto seu pé direito ficou no ar, tentando dar equilíbrio. Se esticou um pouco para a direita, tentando alcançar o livro e ouviu um rangido. Estancou. Nenhum movimento por parte da estante. Prestou atenção aos ruídos da sala para perceber se o professor se aproximava. Silêncio completo. Novamente, se esticou para a direita e ouviu outro rangido. Antes que pudesse se soltar da estante, ela pendeu para a frente e desabou, sobre Tadeu e sobre a mesa. Tadeu bateu as costas com força no chão. A estante teve sua queda interrompida na altura da mesa, mas centenas de pesados volumes caíram sobre o rapaz. Tadeu tinha a impressão de estar presenciando um terremoto, pelo barulho e pelos golpes que recebia de cada livro que acertava sua cabeça, seus braços e seu tórax. Tudo aconteceu muito rápido, mas para Tadeu os livros pareciam ser infinitos. Esperou tudo que havia para cair terminar de cair.
Tadeu sentia dor por todo o seu corpo. Começou a se mover embaixo da montanha de livros. Finalmente se desvencilhou de todos os obstáculos. Sua cabeça doía e ao passar os dedos entre os cabelos, percebeu que um pequeno galo se formava.
Ao se colocar de pé, analisou o estrago. A estante parecia intacta, mas os papéis em cima da mesa haviam se espalhado pela sala. A mesa havia se movido e deixado quatro riscos atrás de cada perna.
Virou-se para a porta e viu o professor parado observando tudo.
- Eu sinto muito, professor.
- Deve mesmo.
- Eu arruinei tudo.
- Não. Você pode encarar as coisas dessa forma, mas olhe em volta. Você simplesmente derrubou uma estante. Ela caiu sobre seu corpo. Tomou um susto e foi só. Mas você ainda está vivo. Os livros ainda estão aí. Pare de choramingar. Sacode a poeira do corpo e coloque tudo de volta no lugar.
Tadeu abaixou os olhos e foi arrumar a bagunça.

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