30.12.07

Só 7 Quilômetros

Não seria fácil levantar. Ângelo havia chegado às 4 da manhã. Como todo bêbado, estava otimista. Durmo 6 horinhas e levanto pra correr, havia pensado.
Acordou com o despertador e a cada apito, sua cabeça latejava. O aparelho tocou por quase um minuto até que Ângelo conseguisse alcançá-lo, se rastejando. Sua língua estava seca e grudenta. O gosto de sua boca era uma mistura de cigarro e saliva seca.
Com muita dificuldade abriu a gaveta do criado mudo e a vasculhou em busca de um Tylenol - colocado ali estrategicamente. Encontrou a cartelinha. Havia apenas 1 comprimido.
- Obrigado, Senhor!
Com mais dificuldade ainda se levantou. Estava só de cueca. Foi cambaleando, tropeçando, se escorando, até a cozinha. Segurava o comprimido com a mão fechada.
Abriu a geladeira e recebeu a primeira luz do dia. Seu apartamento havia sido planejado para ficar completamente escuro.
Na geladeira não havia muita coisa: 1 caixinha de leite, algumas frutas, 2 garrafinhas de água, algumas latas de cerveja e uma garrafinha de Gatorade.
Tacou o comprimido na boca e virou a garrafinha de isotônico. Enquanto o líquido descia gelado empurrando o comprimido esôfago abaixo, Ângelo pensava na noite anterior. Havia se divertido muito, bebido muito, dançado muito, fumado muito. Lembrava-se também de Natália. Conhecera a menina em um pub havia algumas semanas. Ela era linda: cabelos pretos e olhos de jabuticaba. Ela o impressionara com sua maturidade. Natália era 4 anos mais nova. Depois daquele dia haviam se encontrado algumas vezes e ela o havia convidado para um jantar entre amigos em sua casa. Ângelo congelara. Acabara de terminar um longo relacionamento e não pretendia se envolver tão rápido. Decidira então não ir ao jantar. Disse a ela que tinha um compromisso com a família, um aniversário, e que, infelizmente, não poderia ir.
Mas durante toda a noite, mesmo estando entre seus melhores amigos, só havia pensado nela. Pensava agora, cara, tá na hora de parar de fugir.
Nesse momento, o telefone tocou. Era Márcia, a amiga que o havia apresentado a Natália.
- Fala, Má.
- E aí? Como foi a balada ontem?
- Foi lôco.
- Pois é. Mas você dançou. A Natália beijou o Rodrigo, primo da Cláudia, ontem.
Pensou rápido. Não queria demonstrar a raiva que sentia.
- Ah...
- É. Mas ela disse que foi só um beijo. Que ele insistiu muito e acabou vencendo pelo cansaço.
- Sei.
- E aí?
- O quê?
- Não tá puto?
- Não , meu. Não temos nada um com o outro.
- Tá bom. Se esconde mesmo, meninão.
- Márcia, se liga. E deixa eu ir que eu vou correr.
- Tá certo. Vai lá. Beijo.
- Beijo.
Estava puto.
Abriu a persiana da sala esperando a luz do sol. O céu estava cor de chumbo. Abriu a janela e estendeu a mão para fora. Nenhuma gota, nenhuma desculpa: teria mesmo que correr. Vestiu-se e colocou o tênis. Antes de sair, checou o celular. Sem bateria. Conectou o aparelho na tomada e foi correr.
Sempre criava situações em sua mente para se incentivar a correr. Às vezes imaginava que receberia um prêmio milionário ao completar os 7 quilômetros. Outras vezes se via sendo recebido por uma multidão de fãs. E ainda havia ocasiões em que se imaginava desfilando em cima do carro do corpo de bombeiros. A música "Eye of The Tiger" também ajudava, mas só pensava nela no fim do trajeto.
Dessa vez, porém, não pensou em nada. Correu. Sentia suas pernas, cada passada, cada pisada, seu calcanhar pressionando a sola do tênis contra o asfalto. Percebia o peso de seus braços e o movimento de sua cabeça que pendia levemente para a direita devido a um pequeno desvio em sua coluna.
Ao concluir pouco mais da metade do percurso sentiu um pingo de chuva acertar sua cabeça. Pensou, tô fudido. Continuou correndo.
O pingo se transformou em chuvisco. O chuvisco rapidamente se convertou em um pé d'água. Não parou de correr.
Como toda chuva de verão, não durou muito. Mas Ângelo estava ensopado e continuou correndo até terminar os 7 quilômetros de sempre.
Chegou em casa e foi tirando a roupa. Planejava tomar um banho imediatamente, mas seu celular tocou.
Ao olhar no visor do aparelho o número que o chamava não era conhecido. Hesitou um pouco e acabou atendendo.
- Alô?
- Ângelo?
- Quem é?
- É a Natália.
Decidiu que não ia mais fugir. E nunca mais deixaria de correr.

2 comments:

Felipe said...

uhuuuuu... "they eye of the tigeeeeeeeerr"

preciso começar a correr... :P

Anonymous said...

Este, pessoalmente, é o melhor... mas ta dificil de escolher, viu! Ler o seu blog é sinal de diversão e do inesperado... muito legal, Brunitcho!

Preciso começar a correr e me alimentar direito, senão a São Silvestre vai ficar longe, hehehe!