27.6.08

Navio Tumbeiro
Capítulo II

Despertou-se com gritos e um corpo que caía sobre ela. Era outra mulher. Chorava e pedia ajuda. O ambiente continuava escuro, mas agora tudo se movia com muita violência. Havia também muito barulho. Parecia chover muito forte do lado de fora. Percebeu que havia água por todos os lados. Gritos vinham do alto da escada atravessando a porta que antes ela havia enxergado. Gritos também ecoavam naquele aposento escuro. As pessoas que ali estavam eram jogadas umas contra as outras. Tentou se apoiar em algo. A outra mulher se levantava agora. Percebeu um corte na cabeça daquela mulher. Sangrava muito. Dois homens tentavam se equilibrar e se aproximavam. Eles falavam sua língua. Ela compreendia o que eles diziam, mas não os reconhecia. Eles tentavam amparar a mulher ferida. Ela finalmente se colocou de pé.
Conseguiu distinguir em meio ao tumulto aquele mesmo choro que havia ouvido antes de adormecer. Enquanto a outra mulher era amparada pelos homens que falavam sua língua, ela foi se movimentando, se apoiando nas pessoas que estavam pelo caminho, algumas em pé, se equilibrando como podiam, outras de joelhos e mesmo outras deitadas, chorando. Tudo sacudia. Ela percebia agora por onde entrava água no aposento. Descia em grande quantidade pela escada, mas também entrava pelas frestas no teto. Por isso o chão estava tão molhado e escorregadio. Continuou andando até encontrar a origem daquele choro de criança. Uma menininha de pouco mais de 5 anos se agarrava a uma pilastra e chorava.
Se aproximou dela e se amparou na mesma pilastra que dava abrigo à menina. Falou-lhe. Sentou-se a seu lado e a abraçou. A menininha a abraçou de volta. Um abraço muito forte. Era como se as duas estivessem se reencontrando após anos de ausência. Lembrou-se de uma música que seu pai cantava. Não se lembrava das palavras, mas a melodia estava ainda muito viva em sua mente e foi o suficiente para manter a menina tranquila até que tudo se acalmou. O aposento já não sacudia tanto. A garotinha não dormia, mas permanecia muito quieta, seus olhos grandes fixos nos olhos daquela estranha que a acalentava. A mulher pensava que a menina deveria ter fome. Ela também tinha muita fome, mas não parecia haver nada ali. Perguntou a menina sobre sua mãe e ficou feliz de saber que a menina entendia o que ela falava, mas a entristeceu o fato de a garotinha não saber onde estavam sua mãe ou seu pai. E lembrou-se também que não sabia onde estava seu marido.

25.6.08

Navio Tumbeiro
Capítulo I

Abriu os olhos e não reconheceu o lugar onde estava. Estava em um ambiente fechado e escuro. O cheiro era detestável. Percebeu através da pouca luz que entrava por frestas no teto que havia mais pessoas ali. Olhava em volta e procurava alguma silhueta conhecida. De repente sentiu o chão se mover. Na verdade, todo aquele aposento, se é que era um aposento, se movia. Se apoiou à parede e a uma pilastra que identificara a sua frente para conseguir se levantar. Sua cabeça, seu ventre, seu sexo, todo seu corpo doía muito. Lentamente as imagens foram se formando na sua mente.
Haviam invadido sua casa, quebraram tudo. As memórias iam surgindo aos poucos e suas forças se esvaíam com cada nova lembrança. Lembrou de seu marido tentando protegê-la. Vários homens o agarraram e o dominaram. Ela tentou se desvencilhar dos outros que a tinham agarrado também. Separaram-na de seu homem. Levaram-no. Dois homens a seguravam dentro de sua casa. Depois de algum tempo, os outros três voltaram. Ela gritava e cuspia. Tentava se soltar, mas agora eles eram ainda mais fortes. Eram cinco homens fortes. Ela era uma mulher. Mas não deixava de lutar. Os homens tinham no hálito um cheiro que ela não conhecia. Se aproximavam dela e conversavam em uma língua que ela não entendia. Pareciam estar tramando contra ela. Olhavam seu corpo e riam-se. De repente, um deles tocou seus seios e percorreu seu ventre com as mãos. Ela já não gritava, nem se debatia. Sua respiração estava acelerada. Fitava-o com ódio. Os outros quatro a seguraram mais firmemente, cada um imobilizando um de seus membros, enquanto o quinto continuava a explorar seu corpo. Ele se desfez de suas vestes e rasgou as da mulher. Era esta a última lembrança que tinha.
Caiu novamente no chão. Em parte por faltarem-lhe as forças, em parte pelo balanço das paredes e do chão. Não conseguia mais conter o pranto que brotava de seu peito e apertava sua garganta.
Ouviu passos. Vinham de cima. Ouviu alguém chorar. Apertou os olhos. Não conseguia perceber quem era. Haviam muitas pessoas ali. Mas aquela voz, era a voz de uma criança.
Uma porta se abriu, no alto de uma escada que ela agora percebia. A luz que entrava por ali, não era muita, mas ajudou a perceber melhor o estado em que se encontravam aquelas pessoas a sua volta. Todos pareciam cansados, algums estavam feridos, pareciam ter levado uma surra. Subitamente achou que fosse uma boa idéia fingir-se de morta. Um homem desceu as escadas. Sua pele era clara, como a daqueles comerciantes que vieram até sua vila certa vez. Também as roupas daquele homem faziam-na lembrar das roupas daqueles comerciantes. Ele carregava um objeto longo nas mãos. Parecia pesado. Por vezes, deixava o abaixado, quase tocando o solo. Por vezes o amparava com as duas mãos. Ele olhava ao redor. Ela se sentia segura em observá-lo, mas não tinha coragem de se dirigir a ele. Ele deu algumas voltas e se deteve diante de um velho deitado bem próximo a escada. Cutucou o velho com o objeto que trazia às mãos. O velho não se moveu. Cutucou-o mais algumas vezes e disse algumas palavras que ela não conseguia entender. Finalmente, acertou um forte chute no estômago daquele velho caído. Ela ouviu um gemido, mas percebeu que não havia partido daquele corpo sem vida. Parecia ter partido de algum ponto por trás da escada. O homem de pele clara balançou a cabeça. Gritou alguma coisa em direção à porta e agarrou o pé direito do velho. Começou a arrastá-lo, mas se deteve ao pé da escada. A mulher o observava. A distância e a pouca luz faziam com que ela se sentisse segura para levantar um pouco a cabeça e observar melhor o que acontecia, mas agora segurava o choro. Tinha medo de ser ouvida.
Outro homem de pele clara desceu as escadas. Trocou algumas palavras com o primeiro e agarrou o pé esquerdo do velho. Ambos começaram a subir a escada, arrastando com eles aquele corpo sem vida -- a cabeça do velho ia pulando de degrau em degrau, fazendo um barulho oco, seu corpo parecia mais um saco de ossos sendo arrastado escada acima. Ao alcançarem o topo da escada, fecharam novamente a porta, trancando novamente a escuridão dentro daquele aposento. A mulher não tinha muitas forças. E já havia visto o bastante. Não tentou se levantar novamente. Começou a chorar baixinho. Tinha muita fome e sede. Seu corpo doía e sentia um cansaço que parecia não caber em seu corpo. Adormeceu.

17.6.08

Frio

Voltava para casa depois do trabalho. Era um desses raros privilegiados que podem voltar para casa a pé morando em São Paulo. Adorava se lembrar disso. Na verdade, adorava falar sobre isso a quem quer que fosse. Se sentia um rei. Enquanto a maioria de seus amigos passava quase 2 horas no trânsito todos os dias, ele ia embora descendo a rua vagarosamente. Ainda passava na padaria para comprar cigarros. E chegava em casa em exatos 17 minutos após ter deixado o trabalho.
Mas no inverno as coisas não eram assim tão agradáveis.
Naquela noite a temperatura caíra bruscamente. Ele ouvira no rádio que chegaria aos 10 graus antes das 7 da noite. Quando deixou o trabalho, já se passavam das 9. Havia trazido um casaco, mas não esperava que fosse esfriar tanto. Antes de deixar o prédio do escritório onde trabalhava, fechou o zíper do casaco e meteu as mãos nos bolsos da calça.
Ao sair do prédio, se despediu do vigia que fazia a ronda noturna. Aquele cara havia se preparado: estava de sobretudo, gorro, e luvas.
Saiu do prédio e sentiu o vento cortar seu rosto. Seu nariz era como uma pedra de gelo. Foi descendo a rua. Demoraria um pouco mais a chegar em casa hoje. Não dava para andar muito rápido com aquele clima. O sangue em seu corpo nem parecia circular mais. A cada passo parecia estar se aproximando mais do pólo norte. Decidiu fazer a parada de sempre para comprar cigarros e aproveitou para pedir um café bem quentinho. Seria uma grande ajuda. Enquanto tomava o café, se entretia com a conversa do dono da padaria com um funcionário. Falavam de futebol. O dono da padaria reclamava da diretoria do seu time. Culpava a má administração.
Ao terminar o café, pagou sua conta e foi, novamente, enfrentar aquele sopro gelado.
A rua da padaria era paralela à rua onde morava e antes de chegar à altura em que ficava seu prédio, dobrava uma esquina à esquerda em uma ruazinha de pouquíssimo movimento.
Ao entrar naquela rua reconheceu imediatamente o carrinho da catadora de papel que passara a viver ali. Lembrou-se da cena que havia presenciado na semana anterior, quando a dona de uma das casas daquela rua havia chamado a polícia para que expulssassem aquela "mendiga" dali. Não era justo, a mulher dizia aos policiais, afinal ela não pagava impostos com nós.
Foi se aproximando do carrinho e estranhou não ver fumaça. A catadora de papel sempre fazia uma fogueirinha em noites frias como aquela. Ao passar pelo carrinho, percebeu que ela estava deitada ali, mas a fogueira parecia ter se apagado. Por um momento, parou. Olhou em volta. Não havia mais ninguém na rua. Tentou aguçar sua adição. A mulher estava tão parada, tão quieta, que poderia ser confundida com uma estátua. Parecia mesmo fazer parte do cenário, não como um personagem, mas como um poste, ou um hidrante, ou um saco de lixo. Ela não tinha muito com o que se cobrir. E ele estranhara o fato de ela não estar tremendo. E por que será que ela não acendia a maldita fogueira?
Assobiou. Não houve reação. A situação o deixava cada vez mais tenso. Não era de ter medo. Sempre caminhava por aquelas ruas tarde da noite. Mas ficar ali parado também já era demais. E o frio o lembrava a todo instante de que sua cama quentinha o aguardava.
Assobiou novamente. Nada.
Chamou pela mulher:
-- Ei, moça!
Nenhum movimento, nenhum som, nada.
Chamou mais alto e o resultado era o mesmo. Se impacientou e foi até ela. Tocou seu corpo, sacudiu a pobre mulher e percebeu que o corpo dela já esfriara. Assustou-se. Tirou a mão daquele corpo inerte rapidamente e se levantou. Sentia um calafrio na espinha. Estava morta. Morrera de frio. Não sabia o que fazer. Sentiu uma lágrima correr-lhe a face. Aos poucos dava soluços contidos. Não entendia como algo assim poderia acontecer. Ficou ali sem reação por alguns minutos. Talvez velasse a morta. Sim, era um velório de uma só pessoa, sem padre, sem capela, sem caixão, sem flores, sem pêsames aos familiares. Não havia familiares. Havia jornal, restos de comida em uma panela velha e suja, uma garrafa d'água pela metade.
Achou que deveria fazer alguma coisa, mas o quê? Pensou em ligar para os bombeiros. Já não adiantava mais nada. Não havia nenhuma vida a ser salva. Pensou então na polícia. Melhor não. Passaria a noite na delegacia dando explicações sobre algo que simplesmente não lhe dizia respeito. Ele não era o culpado pela morte daquela mulher. Enxugou as lágrimas com a manga do casaco e decidiu ser racional. Não havia nada que pudesse ser feito por aquela pobre coitada. Além do mais, se ele tivesse tomado outro caminho, não teria visto aquilo. Por que havia cismado de parar? Por que não continuara? A essa altura, já estaria dormindo.
Decidiu ir embora. Nada podia ser feito e o corpo seria descoberto pela manhã por outra pessoa.

10.6.08

Abulia

Está acordado, mas seus solhos ainda estão fechados, simplesmente por que não tem vontade de abrí-los. De repente, um barulho vindo da sala o força a fazê-lo. Percebe ser o vento e nem mesmo se mexe, mas não volta a fechar os olhos. Fica lá, olhando para o guarda-roupa. Olhando para as portas fechadas. Deveria se levantar, mas nem pensa nisso. Já passa da hora do almoço. Não há nada na geladeira. Talvez um resto de pizza da semana passada. Está frio e o vento que vem da sala gela sua pele. Continua imóvel.

6.6.08

Auto-controle

Olhou para o celular e viu que era ela. Como ela havia prometido no email, às 11:30 ela o telefonava. Depois de 15 anos sem vê-la, ele não sabia como reagiria ao reencontrá-la. Não devo fazer isso, repetia para si mesmo enquanto do celular ecoava uma versão de Garota de Ipanema.
- Alô.
- Oi.
- Tudo bem?
- Tudo. Eu disse que ia ligar.
- É.
- E você atendeu.
- É.
- Então é por que você também quer.
No email que enviara, ela o convidava para um almoço. Dizia que o marido estava fora da cidade a negócios e não tinha hora para voltar. Sérgio já havia feito sua inscrição para um Congresso que aconteceria no Rio naquele fim de semana.
Ele enfim respondeu:
- Não tenho certeza.
- Bom, não quero te pressionar. Vou te esperar aqui. Se você não chegar em uma hora, eu vou entender que você desistiu.
Desligaram. Sérgio estava atormentado. Sabia que o que fazia era errado, imoral. Amava sua mulher. Amava seus filhos. Amava sua vida perfeita de homem bem casado e bem sucedido. Mas sentia muita falta do gosto da aventura. Gosto muito bem representado por Sílvia. E ela o esperava a menos de 15 minutos dali.
Finalmente decidiu-se. Vou lá rapidinho, pensava, dou um alô pra ela, como alguma coisa e vou me embora. Não havia nada demais em rever uma velha amiga. É verdade que Sílvia era bem mais do que uma velha amiga. Mas naquele instante Sérgio decidira tratá-la assim. Ligou para seu escritório e falou com sua secretária:
- Solange, como está minha agenda para hoje?
- Não tem nada não, Seu Sérgio. O contador ficou de vir aqui, mas desmarcou.
- Tá certo. Pode fechar e sair mais cedo então.
Sua mente estava fervilhando. Tinha esperança de que houvesse algum compromisso inadiável que o obrigasse a voltar depressa para o escritório. Bom, em todo o caso, ele poderia sempre inventar alguma desculpa.
Quando estacionou o carro, sentiu a transpiração escorrer pelas costas. Deu uma olhada no retrovisor. Os cabelos grisalhos o lembravam de suas responsabilidades. Saiu do carro afoito.
Assim que entrou no restaurante, avistou Sílvia. Perfeita como sempre. Antes de caminhar até a mesa onde ela estava sentada, respirou fundo e disse baixinho para si mesmo:
- Dane-se!