25.6.08

Navio Tumbeiro
Capítulo I

Abriu os olhos e não reconheceu o lugar onde estava. Estava em um ambiente fechado e escuro. O cheiro era detestável. Percebeu através da pouca luz que entrava por frestas no teto que havia mais pessoas ali. Olhava em volta e procurava alguma silhueta conhecida. De repente sentiu o chão se mover. Na verdade, todo aquele aposento, se é que era um aposento, se movia. Se apoiou à parede e a uma pilastra que identificara a sua frente para conseguir se levantar. Sua cabeça, seu ventre, seu sexo, todo seu corpo doía muito. Lentamente as imagens foram se formando na sua mente.
Haviam invadido sua casa, quebraram tudo. As memórias iam surgindo aos poucos e suas forças se esvaíam com cada nova lembrança. Lembrou de seu marido tentando protegê-la. Vários homens o agarraram e o dominaram. Ela tentou se desvencilhar dos outros que a tinham agarrado também. Separaram-na de seu homem. Levaram-no. Dois homens a seguravam dentro de sua casa. Depois de algum tempo, os outros três voltaram. Ela gritava e cuspia. Tentava se soltar, mas agora eles eram ainda mais fortes. Eram cinco homens fortes. Ela era uma mulher. Mas não deixava de lutar. Os homens tinham no hálito um cheiro que ela não conhecia. Se aproximavam dela e conversavam em uma língua que ela não entendia. Pareciam estar tramando contra ela. Olhavam seu corpo e riam-se. De repente, um deles tocou seus seios e percorreu seu ventre com as mãos. Ela já não gritava, nem se debatia. Sua respiração estava acelerada. Fitava-o com ódio. Os outros quatro a seguraram mais firmemente, cada um imobilizando um de seus membros, enquanto o quinto continuava a explorar seu corpo. Ele se desfez de suas vestes e rasgou as da mulher. Era esta a última lembrança que tinha.
Caiu novamente no chão. Em parte por faltarem-lhe as forças, em parte pelo balanço das paredes e do chão. Não conseguia mais conter o pranto que brotava de seu peito e apertava sua garganta.
Ouviu passos. Vinham de cima. Ouviu alguém chorar. Apertou os olhos. Não conseguia perceber quem era. Haviam muitas pessoas ali. Mas aquela voz, era a voz de uma criança.
Uma porta se abriu, no alto de uma escada que ela agora percebia. A luz que entrava por ali, não era muita, mas ajudou a perceber melhor o estado em que se encontravam aquelas pessoas a sua volta. Todos pareciam cansados, algums estavam feridos, pareciam ter levado uma surra. Subitamente achou que fosse uma boa idéia fingir-se de morta. Um homem desceu as escadas. Sua pele era clara, como a daqueles comerciantes que vieram até sua vila certa vez. Também as roupas daquele homem faziam-na lembrar das roupas daqueles comerciantes. Ele carregava um objeto longo nas mãos. Parecia pesado. Por vezes, deixava o abaixado, quase tocando o solo. Por vezes o amparava com as duas mãos. Ele olhava ao redor. Ela se sentia segura em observá-lo, mas não tinha coragem de se dirigir a ele. Ele deu algumas voltas e se deteve diante de um velho deitado bem próximo a escada. Cutucou o velho com o objeto que trazia às mãos. O velho não se moveu. Cutucou-o mais algumas vezes e disse algumas palavras que ela não conseguia entender. Finalmente, acertou um forte chute no estômago daquele velho caído. Ela ouviu um gemido, mas percebeu que não havia partido daquele corpo sem vida. Parecia ter partido de algum ponto por trás da escada. O homem de pele clara balançou a cabeça. Gritou alguma coisa em direção à porta e agarrou o pé direito do velho. Começou a arrastá-lo, mas se deteve ao pé da escada. A mulher o observava. A distância e a pouca luz faziam com que ela se sentisse segura para levantar um pouco a cabeça e observar melhor o que acontecia, mas agora segurava o choro. Tinha medo de ser ouvida.
Outro homem de pele clara desceu as escadas. Trocou algumas palavras com o primeiro e agarrou o pé esquerdo do velho. Ambos começaram a subir a escada, arrastando com eles aquele corpo sem vida -- a cabeça do velho ia pulando de degrau em degrau, fazendo um barulho oco, seu corpo parecia mais um saco de ossos sendo arrastado escada acima. Ao alcançarem o topo da escada, fecharam novamente a porta, trancando novamente a escuridão dentro daquele aposento. A mulher não tinha muitas forças. E já havia visto o bastante. Não tentou se levantar novamente. Começou a chorar baixinho. Tinha muita fome e sede. Seu corpo doía e sentia um cansaço que parecia não caber em seu corpo. Adormeceu.

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