17.6.08

Frio

Voltava para casa depois do trabalho. Era um desses raros privilegiados que podem voltar para casa a pé morando em São Paulo. Adorava se lembrar disso. Na verdade, adorava falar sobre isso a quem quer que fosse. Se sentia um rei. Enquanto a maioria de seus amigos passava quase 2 horas no trânsito todos os dias, ele ia embora descendo a rua vagarosamente. Ainda passava na padaria para comprar cigarros. E chegava em casa em exatos 17 minutos após ter deixado o trabalho.
Mas no inverno as coisas não eram assim tão agradáveis.
Naquela noite a temperatura caíra bruscamente. Ele ouvira no rádio que chegaria aos 10 graus antes das 7 da noite. Quando deixou o trabalho, já se passavam das 9. Havia trazido um casaco, mas não esperava que fosse esfriar tanto. Antes de deixar o prédio do escritório onde trabalhava, fechou o zíper do casaco e meteu as mãos nos bolsos da calça.
Ao sair do prédio, se despediu do vigia que fazia a ronda noturna. Aquele cara havia se preparado: estava de sobretudo, gorro, e luvas.
Saiu do prédio e sentiu o vento cortar seu rosto. Seu nariz era como uma pedra de gelo. Foi descendo a rua. Demoraria um pouco mais a chegar em casa hoje. Não dava para andar muito rápido com aquele clima. O sangue em seu corpo nem parecia circular mais. A cada passo parecia estar se aproximando mais do pólo norte. Decidiu fazer a parada de sempre para comprar cigarros e aproveitou para pedir um café bem quentinho. Seria uma grande ajuda. Enquanto tomava o café, se entretia com a conversa do dono da padaria com um funcionário. Falavam de futebol. O dono da padaria reclamava da diretoria do seu time. Culpava a má administração.
Ao terminar o café, pagou sua conta e foi, novamente, enfrentar aquele sopro gelado.
A rua da padaria era paralela à rua onde morava e antes de chegar à altura em que ficava seu prédio, dobrava uma esquina à esquerda em uma ruazinha de pouquíssimo movimento.
Ao entrar naquela rua reconheceu imediatamente o carrinho da catadora de papel que passara a viver ali. Lembrou-se da cena que havia presenciado na semana anterior, quando a dona de uma das casas daquela rua havia chamado a polícia para que expulssassem aquela "mendiga" dali. Não era justo, a mulher dizia aos policiais, afinal ela não pagava impostos com nós.
Foi se aproximando do carrinho e estranhou não ver fumaça. A catadora de papel sempre fazia uma fogueirinha em noites frias como aquela. Ao passar pelo carrinho, percebeu que ela estava deitada ali, mas a fogueira parecia ter se apagado. Por um momento, parou. Olhou em volta. Não havia mais ninguém na rua. Tentou aguçar sua adição. A mulher estava tão parada, tão quieta, que poderia ser confundida com uma estátua. Parecia mesmo fazer parte do cenário, não como um personagem, mas como um poste, ou um hidrante, ou um saco de lixo. Ela não tinha muito com o que se cobrir. E ele estranhara o fato de ela não estar tremendo. E por que será que ela não acendia a maldita fogueira?
Assobiou. Não houve reação. A situação o deixava cada vez mais tenso. Não era de ter medo. Sempre caminhava por aquelas ruas tarde da noite. Mas ficar ali parado também já era demais. E o frio o lembrava a todo instante de que sua cama quentinha o aguardava.
Assobiou novamente. Nada.
Chamou pela mulher:
-- Ei, moça!
Nenhum movimento, nenhum som, nada.
Chamou mais alto e o resultado era o mesmo. Se impacientou e foi até ela. Tocou seu corpo, sacudiu a pobre mulher e percebeu que o corpo dela já esfriara. Assustou-se. Tirou a mão daquele corpo inerte rapidamente e se levantou. Sentia um calafrio na espinha. Estava morta. Morrera de frio. Não sabia o que fazer. Sentiu uma lágrima correr-lhe a face. Aos poucos dava soluços contidos. Não entendia como algo assim poderia acontecer. Ficou ali sem reação por alguns minutos. Talvez velasse a morta. Sim, era um velório de uma só pessoa, sem padre, sem capela, sem caixão, sem flores, sem pêsames aos familiares. Não havia familiares. Havia jornal, restos de comida em uma panela velha e suja, uma garrafa d'água pela metade.
Achou que deveria fazer alguma coisa, mas o quê? Pensou em ligar para os bombeiros. Já não adiantava mais nada. Não havia nenhuma vida a ser salva. Pensou então na polícia. Melhor não. Passaria a noite na delegacia dando explicações sobre algo que simplesmente não lhe dizia respeito. Ele não era o culpado pela morte daquela mulher. Enxugou as lágrimas com a manga do casaco e decidiu ser racional. Não havia nada que pudesse ser feito por aquela pobre coitada. Além do mais, se ele tivesse tomado outro caminho, não teria visto aquilo. Por que havia cismado de parar? Por que não continuara? A essa altura, já estaria dormindo.
Decidiu ir embora. Nada podia ser feito e o corpo seria descoberto pela manhã por outra pessoa.

1 comment:

Anonymous said...

Tô aqui. Silenciosamente pedindo que esse seja apenas um conto, que nao seja tao real qto parece, e sei que mesmo que nao tenha sido com voce, isso tudo é bem real.
Me remeteu mais uma vez a lembrança de quao pequenos e hipocritas nós somos.Maldizemos um frio passageiro enquanto uma cama nos espera ( e muito mais )quando que a vida parece ter esquecido de ser um pouco mais gentil, na mesma rua.
desculpa o desabafo.
(A)le