28.11.08

Ticket to Ride

Ticket to Ride

Eu cheguei em casa e ela estava sentada na poltrona que eu herdara do meu avô. Estava usando um daqueles vestidos de hippie que tanto gostava. Era preto, de algodão, com retalhos multicoloridos na barra. Percebi que usava todos os seus anéis. E isso só acontecia em ocasiões muito especiais. Foi nesse momento também que notei a mala velha a seus pés. Era uma mala muito velha, de couro cor de ferrugem. Estava estufada. Junto a ela, aquela bolsa de renda enorme que usávamos para ir à cachoeira em dias de domingo. Uns vão à missa. Nós íamos à cachoeira.
Eu entrei e antes que fechasse a porta atrás de mim, ela se levantou. Colocou a bolsa no ombro. Agarrou a mala velha, com muita dificuldade, com a mão esquerda. Me mostrou uma passagem que tinha nas mãos. O bilhete era para São Paulo. Não disse nada. Me deu um beijo na testa. E saiu pela porta. O sonho acabou ali.

26.11.08

Swimming Pool Eyes

I watch you watch me
Clear water surrounds my body
A feeling so sweet to my soul

Big eyes staring at me
Lips smiling waiting for my own

For an hour or two, I wanna dive
Into those swimming pool eyes

17.11.08

Rádio Táxi

Andava por perto da Santa Casa procurando um táxi. Achou um ponto, mas não havia nenhum carro. Apesar de já ser quase madrugada, havia ali um homem trabalhando num desses carrinhos onde se encontra todo tipo de guloseima e cigarros do paraguai vendidos "picados".
-- Boa noite, o senhor sabe onde tem um ponto de táxi aqui por perto?
O homem do carrinho fritava uma salsicha. Com a espátula que usava para girar os cilindros de carne apontou para o ponto de táxi do outro lado da rua.
-- Ali tem um, ó. 
-- Ah, então aquele ali ainda tá funcionando.
-- Tá, sim. Espera um pouquinho que já já chega um.
Ao virar-se para atravessar a rua, percebeu que não seria necessário ir até o ponto de táxi. Um Santana branco se aproximava e não parecia carregar nenhum passageiro. Levantou o braço direito e o veículo encostou.
-- Amigo, quanto custa uma corrida até o Shopping Santa Cruz?
O motorista, um senhor beirando os 60 anos, mascava um pedaço de palito de dente. Em tom profético, olhando através do pára-brisa, como se a rua à sua frente lhe mostrasse a resposta, disse:
-- Ah, vai chegar nums 30, 35, viu?
O rapaz havia calculado mal. Havia estimado que a corrida não sairia por mais de 25 reais. Mas não havia outra opção. O metrô só abriria novamente depois das 4. Entrou no carro.
Observou que o Santana aparentava mais idade do que certamente tinha, assim como seu motorista, que agora checava com o rapaz o melhor trajeto até o shopping. O rapaz se sentiu reconfortado. Sempre se sentia desconfortável em sugerir aos taxistas o trajeto. Sabia que isso era necessário, pois nem todos os taxistas eram honestos. Assim, se não mostrasse conhecer a cidade, corria o risco de dar voltas desnecessárias. Ao mesmo tempo, nem todo taxista era desonesto. Dessa forma, comentar sobre o trajeto preferido poderia ofender o profissional.
Enfim, sentiu-se muito reconfortado por não ter que fazer aquela dolorosa escolha (entre comentar sobre o trajeto ou não). Tão reconfortado que resolveu puxar papo.
-- E aí, o Santanão é bom mesmo?
O taxista segurava o volante com a mão esquerda enquanto o Santana, sem reclamar, subia a 23 de Maio ultrapassando todos os poucos carros que faziam o mesmo trajeto, inclusive cortando pela faixa da direita. Com a outra mão, ele segurava o pedaço de palito de dente, já bastante mastigado.
-- Ééééé... Ele tá é muito judiado. Já rodei mais de 500 mil com ele. -- com gesto súbito olhou para o rapaz, segurando o palito entre o dedo médio e o dedão, enquanto pronunciava, com o dedo indicador em riste -- Mas nunca abri o motor dele.
-- E bebe muito?
O taxista agora sorria gostoso, mostrando os dentes.
-- Olha, se você dá partida no carro, ele já tá bebendo. Aí, tem gente que diz que aquele carro bebe mais do que esse, mas é o motorista, ué? Eu não quero nem saber. Enfio o pé.
-- Não fabricam mais, né?
-- Não.
-- Mas é um carrão, né?
-- Ah, é. Mas carro grande, também, tem que meter logo um gás. Se você comprar um carro grande, mete logo um gás. É a primeira coisa. Eu vou pegar uma Zafira agora.
-- E vai por gás?
-- Vooooooou...
Ficaram por alguns segundos em silêncio. O rapaz, um tanto quanto confuso, apreciava o estado lastimável do Santana, ao mesmo tempo que admirava o silêncio e a força do motor. O taxista então disse:
-- Sabe que eu tinha uma fuqueta 66? E eu colocava óleo diesel? -- agora ele gargalhava -- E ele andava! Eu não tinha dinheiro pra pôr gasolina. Então punha óleo diesel, ué? E as minas pagavam mó pau praquela fuqueta. Sabe que uma vez eu fui prum putêro lá em Viracopos com um amigo meu? Ele já morreu. Deixou uma bucetona duma mulher, rapaz. Até hoje sou doido pra comer a mulher dele. Sabe que foi assim: ele foi dormir e não acordou mais?
-- Infartou?
-- Sei lá. Só sei que a mulher dele acordou e ele tava lá durinho.
-- Bom, deve ser melhor, pra quem vai, morrer assim do que ficar sofrendo, doente.
-- É. Cê vê minha mãe. Um dia me deu um negócio e eu resolvi que tinha que ir na casa dela. Cheguei lá e ela tava lá vendo televisão. Ela gritou lá de dentro: "o portão tá só encostado". Eu entrei e pediu pra eu pegar um copo d'água pra ela tomar o remedinho dela. Fui na cozinha e quando voltei ela tava lá durinha.
-- Foi tranqüila, então?
-- Tranqüila. Já meu sogro... Entro na Botucatu?
-- É. Eu não vou no shopping mesmo não. Vou ali perto do Hospital São Paulo.
-- Ah, tá. Eu sofri pra caralho com meu sogro. Aquele cara era legal pra caralho. Mas sofreu pra burro, porra! Ficou no hospital e falava: "pô, cê vai me largar aqui? eu quero ir pra casa!" Mas, porra, o que eu ia fazer, caralho?! Eu falava pra ele que ele tava no hospital. Ali tinha uma equipe médica pra cuidar dele, porra. Aí, morreu. E aí vai falar que não cuidaram dele. Porra, caralho, ele tinha uma equipe médica cuidando dele. Se foi, era por que era pra ir, caralho. Mas ele era legal pra caralho. Chegamos.
Encostou o carro e conferiu o taxímetro. 
-- Aí, nem deu 30. Deu 26, olha aí ó!
-- É, e eu acho que tenho até trocado. Aqui.
-- Aí é bom, né? Valeu. Precisando é só chamar. Tamo sempre por lá.
O rapaz agradeceu e fechou a porta. O carro arrancou devagar e entrou à direita na Pedro de Toledo.

12.11.08

Ruídos

Acabara de se deitar. Seu corpo se adaptava àquele colchão desconhecido esparramado no chão, enquanto Ronaldo, em sua cama, completamente adaptado, já roncava. A princípio Fábio não achou necessário usar a coberta dobrada a seus pés. Mas percebia que com o caminhar das horas, aquele quarto parecia ir ficando mais e mais frio. A porta estava entreaberta. A janela estava fechada, mas as frestas permitiam que uma leve corrente de ar frio atravessasse o aposento. Fábio decidiu puxar a coberta para cobrir o peito. Lembrava-se de sua mãe nessas horas.
Fábio e Ronaldo haviam conversado por horas. Muito tempo se passara desde a última vez que se viram. Muito papo para colocar em dia. Ronaldo decidira se casar com Ângela, mas ainda não haviam marcado a data para o casório e nem decidido se voltariam ao Brasil para uma cerimônia em família. Fábio continuava o mesmo solteirão solitário de sempre. Durante o jantar, Fábio revelara a Ronaldo que decidira parar de beber. Ronaldo não conseguia ver o menor sentido naquilo, mas como apoiava o amigo em qualquer coisa, disse em tom solene:
-- Não temos álcool, mas temos as palavras.
Depois do jantar, obviamente, fumaram um baseado. Para espanto e diversão de Ronaldo, isso Fábio não havia largado. E intrigado, não cansava de rir e perguntar:
-- Beber não pode. Fumar maconha pode?
Desciam a Singel a pé, às margens do canal, relembrando os velhos tempos, e gargalhando aqui e ali, até que chegaram ao apartamento.
Ronaldo dividia um pequeno apartamento em Amsterdã com um primo surdo. A deficiência do primo, se tornara uma benção para a convivência mútua. Ronaldo sempre fora muito barulhento. Agora, ninguém reclamava disso. O apartamento era realmente bem pequeno. O sofá da sala não serviria nem para uma noite. Mas Ronaldo mantinha um colchão velho de acampamento enrolado em cima do guarda roupa. Assim que chegaram, Ronaldo jogou o colchão no chão, e deu um travesseiro, um lençol e uma coberta a Fábio.
Depois de devidamente instalados, cada um em seu leito, ainda conversaram um pouco sobre animais de estimação. Ronaldo defendia o cachorro por sua fidelidade. Fábio, o gato, por sua integridade. Riam muito e se entendiam pouco.
Ronaldo, em certo momento, virou-se para o canto. Alcançou o interruptor do abajur sem nem olhar pra ele e desligou a luz:
-- Cara, vou dormir.
E como se essas palavras fossem mágicas, já roncava.
Fábio estava inquieto. Não era só o sono. O apartamento lhe parecia meio sombrio. O primo de Ronaldo não era exatamente o que se chamaria de um cara normal. Carregava sempre uma carranca na cara e o movimento que mais fazia era chacoalhar a cabeça de um lado a outro, em reprovação a tudo que pudesse ser reprovado.
Além disso, havia esse ventinho frio. Fábio não conseguia dormir. Às vezes tinha a impressão de estar perdendo a consciência. Seu corpo ficava imóvel por um longo tempo. Era como se todos os seus membros estivessem adormecidos, mas de uma maneira agradável. No entanto, ele não perdia a consciência. Seus ouvidos, como radares, patrulhavam todo o apartamento, trazendo à sua mente qualquer novidade que encontrassem: um assopro vindo da janela; a vibração da moldura causada pelo vento; um rangido vindo da cama de Ronaldo; algum outro ruído desconhecido, proveniente, provavelmente, do quarto do primo de Ronaldo.
Fábio sempre tinha problemas para dormir em lugares novos. Dizia sempre em sua defesa que o ouvido precisava se acostumar, selecionar os ruídos cotidianos dos ruídos que fugiam à normalidade da casa. E, ainda segundo sua teoria para a dificuldade em dormir em ambientes desconhecidos, cada casa, cada apartamento, cada quarto, tinha sua coleção de ruídos cotidianos. 
Agora, Fábio, já começava a entender aquele quarto. Já reconhecia um ruído leve que vinha do quarto ao lado, percebia a vibração da janela causada pelo vento. Ia então sentindo sua mente seguir o seu corpo e relaxar. Estava deitado de bruços com a cabeça voltada para a porta do quarto, que ficava na parede oposta à da janela. Nesse momento, era como se nem fosse ele mesmo que estivesse ali. Ele era apenas um corpo estático, anestesiado. Os ruídos iam ficando cada vez mais distantes.
De repente, uma vibração mais forte da janela o chamou de volta à consciência. "Alguém entrou no quarto," pensava. Tinha a nítida sensação de que alguém o observava. Seus olhos estavam abertos. Sabia que pela porta não havia entrado ninguém (seria impossível entrar no quarto sem se pisar no colchão onde estava deitado). Sabia também que a janela estava fechada e que não era possível abrí-la por fora sem a quebrar. 
Mas a sensação era forte demais. Alguém o observava. Conseguia ouvir Ronaldo ressonando, então não era ele que o observava.
"Não tem ninguém nesse quarto além de nós dois," pensava. No entanto, não conseguia mandar embora aquela sensação de que estava sendo vigiado, velado.
Começou a lembrar das histórias que ouvia, quando criança, da tia que ia sempre aos tais centros. Ela não era espírita, como a própria sempre repetia, mas tinha curiosidade. E depois que proclamaram-na médium, suas visitas aos centros passaram a ser mais e mais freqüentes. E ela contava como existia muita gente que era médium e nem sabia. Ela explicava que cada um percebia a presença de espíritos de um jeito: uns os viam; uns os escutavam; uns apenas sentiam uma pressão em seu peito que indicava algum tipo de presença.
Fábio não tinha coragem de girar a cabeça em direção à janela. Já se arrependera e se perdoara por ter aberto os olhos. Girar a cabeça para checar o outro lado do quarto não faria. Reuniu forças e coragem para dizer:
-- Tem alguém aí?
Não obteve resposta alguma, mas continuava com aquela mesma sensação.
Sua tia contava também que havia espíritos bons e espíritos maus, "como as pessoas," dizia ela. E que os espíritos maus buscavam atravessar o caminho dos vivos, por inveja, por ciúmes, por medo. E os espíritos bons velavam, protegiam.
Fábio não conseguia evitar imaginar agora uma nuvem negra entrando de supetão pelas frestas da janela às suas costas causando aquela vibração mais escandalosa que o trouxera à consciência novamente. Imaginava uma nuvem espessa que empurrava a moldura e se reunia numa forma humanóide, pairando sobre seu corpo, com dois pequenos círculos vermelhos no centro. Agora fechava os olhos. 
Suas costas estavam mais quentes no centro, como se alguém tivesse pousado ali a mão. Mas não sentia pressão alguma. A sensação de temperatura, no entanto, era inconfundível. 
A nuvem negra emitia uma projeção que tocava suas costas, causando aquela sensação.
Começou a rezar.
Subitamente, pensou em uma nuvem mais clara, quase branca que entrava da mesma maneira, empurrando as frestas da janela e causando a vibração. A nuvem branca também paraiva sobre seu corpo, como havia feito antes a nuvem negra. Não tinha rosto, mas parecia sorrir. E estendia uma projeção que tocava as costas de Fábio, onde ele percebia um aumento de temperatura.
Fábio gostava mais dessa segunda imagem e resolveu adormecer.