12.11.08

Ruídos

Acabara de se deitar. Seu corpo se adaptava àquele colchão desconhecido esparramado no chão, enquanto Ronaldo, em sua cama, completamente adaptado, já roncava. A princípio Fábio não achou necessário usar a coberta dobrada a seus pés. Mas percebia que com o caminhar das horas, aquele quarto parecia ir ficando mais e mais frio. A porta estava entreaberta. A janela estava fechada, mas as frestas permitiam que uma leve corrente de ar frio atravessasse o aposento. Fábio decidiu puxar a coberta para cobrir o peito. Lembrava-se de sua mãe nessas horas.
Fábio e Ronaldo haviam conversado por horas. Muito tempo se passara desde a última vez que se viram. Muito papo para colocar em dia. Ronaldo decidira se casar com Ângela, mas ainda não haviam marcado a data para o casório e nem decidido se voltariam ao Brasil para uma cerimônia em família. Fábio continuava o mesmo solteirão solitário de sempre. Durante o jantar, Fábio revelara a Ronaldo que decidira parar de beber. Ronaldo não conseguia ver o menor sentido naquilo, mas como apoiava o amigo em qualquer coisa, disse em tom solene:
-- Não temos álcool, mas temos as palavras.
Depois do jantar, obviamente, fumaram um baseado. Para espanto e diversão de Ronaldo, isso Fábio não havia largado. E intrigado, não cansava de rir e perguntar:
-- Beber não pode. Fumar maconha pode?
Desciam a Singel a pé, às margens do canal, relembrando os velhos tempos, e gargalhando aqui e ali, até que chegaram ao apartamento.
Ronaldo dividia um pequeno apartamento em Amsterdã com um primo surdo. A deficiência do primo, se tornara uma benção para a convivência mútua. Ronaldo sempre fora muito barulhento. Agora, ninguém reclamava disso. O apartamento era realmente bem pequeno. O sofá da sala não serviria nem para uma noite. Mas Ronaldo mantinha um colchão velho de acampamento enrolado em cima do guarda roupa. Assim que chegaram, Ronaldo jogou o colchão no chão, e deu um travesseiro, um lençol e uma coberta a Fábio.
Depois de devidamente instalados, cada um em seu leito, ainda conversaram um pouco sobre animais de estimação. Ronaldo defendia o cachorro por sua fidelidade. Fábio, o gato, por sua integridade. Riam muito e se entendiam pouco.
Ronaldo, em certo momento, virou-se para o canto. Alcançou o interruptor do abajur sem nem olhar pra ele e desligou a luz:
-- Cara, vou dormir.
E como se essas palavras fossem mágicas, já roncava.
Fábio estava inquieto. Não era só o sono. O apartamento lhe parecia meio sombrio. O primo de Ronaldo não era exatamente o que se chamaria de um cara normal. Carregava sempre uma carranca na cara e o movimento que mais fazia era chacoalhar a cabeça de um lado a outro, em reprovação a tudo que pudesse ser reprovado.
Além disso, havia esse ventinho frio. Fábio não conseguia dormir. Às vezes tinha a impressão de estar perdendo a consciência. Seu corpo ficava imóvel por um longo tempo. Era como se todos os seus membros estivessem adormecidos, mas de uma maneira agradável. No entanto, ele não perdia a consciência. Seus ouvidos, como radares, patrulhavam todo o apartamento, trazendo à sua mente qualquer novidade que encontrassem: um assopro vindo da janela; a vibração da moldura causada pelo vento; um rangido vindo da cama de Ronaldo; algum outro ruído desconhecido, proveniente, provavelmente, do quarto do primo de Ronaldo.
Fábio sempre tinha problemas para dormir em lugares novos. Dizia sempre em sua defesa que o ouvido precisava se acostumar, selecionar os ruídos cotidianos dos ruídos que fugiam à normalidade da casa. E, ainda segundo sua teoria para a dificuldade em dormir em ambientes desconhecidos, cada casa, cada apartamento, cada quarto, tinha sua coleção de ruídos cotidianos. 
Agora, Fábio, já começava a entender aquele quarto. Já reconhecia um ruído leve que vinha do quarto ao lado, percebia a vibração da janela causada pelo vento. Ia então sentindo sua mente seguir o seu corpo e relaxar. Estava deitado de bruços com a cabeça voltada para a porta do quarto, que ficava na parede oposta à da janela. Nesse momento, era como se nem fosse ele mesmo que estivesse ali. Ele era apenas um corpo estático, anestesiado. Os ruídos iam ficando cada vez mais distantes.
De repente, uma vibração mais forte da janela o chamou de volta à consciência. "Alguém entrou no quarto," pensava. Tinha a nítida sensação de que alguém o observava. Seus olhos estavam abertos. Sabia que pela porta não havia entrado ninguém (seria impossível entrar no quarto sem se pisar no colchão onde estava deitado). Sabia também que a janela estava fechada e que não era possível abrí-la por fora sem a quebrar. 
Mas a sensação era forte demais. Alguém o observava. Conseguia ouvir Ronaldo ressonando, então não era ele que o observava.
"Não tem ninguém nesse quarto além de nós dois," pensava. No entanto, não conseguia mandar embora aquela sensação de que estava sendo vigiado, velado.
Começou a lembrar das histórias que ouvia, quando criança, da tia que ia sempre aos tais centros. Ela não era espírita, como a própria sempre repetia, mas tinha curiosidade. E depois que proclamaram-na médium, suas visitas aos centros passaram a ser mais e mais freqüentes. E ela contava como existia muita gente que era médium e nem sabia. Ela explicava que cada um percebia a presença de espíritos de um jeito: uns os viam; uns os escutavam; uns apenas sentiam uma pressão em seu peito que indicava algum tipo de presença.
Fábio não tinha coragem de girar a cabeça em direção à janela. Já se arrependera e se perdoara por ter aberto os olhos. Girar a cabeça para checar o outro lado do quarto não faria. Reuniu forças e coragem para dizer:
-- Tem alguém aí?
Não obteve resposta alguma, mas continuava com aquela mesma sensação.
Sua tia contava também que havia espíritos bons e espíritos maus, "como as pessoas," dizia ela. E que os espíritos maus buscavam atravessar o caminho dos vivos, por inveja, por ciúmes, por medo. E os espíritos bons velavam, protegiam.
Fábio não conseguia evitar imaginar agora uma nuvem negra entrando de supetão pelas frestas da janela às suas costas causando aquela vibração mais escandalosa que o trouxera à consciência novamente. Imaginava uma nuvem espessa que empurrava a moldura e se reunia numa forma humanóide, pairando sobre seu corpo, com dois pequenos círculos vermelhos no centro. Agora fechava os olhos. 
Suas costas estavam mais quentes no centro, como se alguém tivesse pousado ali a mão. Mas não sentia pressão alguma. A sensação de temperatura, no entanto, era inconfundível. 
A nuvem negra emitia uma projeção que tocava suas costas, causando aquela sensação.
Começou a rezar.
Subitamente, pensou em uma nuvem mais clara, quase branca que entrava da mesma maneira, empurrando as frestas da janela e causando a vibração. A nuvem branca também paraiva sobre seu corpo, como havia feito antes a nuvem negra. Não tinha rosto, mas parecia sorrir. E estendia uma projeção que tocava as costas de Fábio, onde ele percebia um aumento de temperatura.
Fábio gostava mais dessa segunda imagem e resolveu adormecer.

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