8.7.09

Manhã de Devoção

Ela

A arte de falar sem ser ouvida. Talvez por isso eu tenha me tornado professora. Chorara durante o banho. Entrei na cozinha e ele me olhava impassível, com um quase sorriso no rosto. Seus olhos definitiva e deliciosamente em mim. Mas o rádio ligado me deixava ainda mais irritada. Sustentando o olhar com o qual eu o fusilava, desliguei o chiado enlouquecedor. Gesticulava muito, andava de um lado a outro da cozinha enquanto jogava tudo que estava carregando sozinha em cima dele. Era quase insuportavelmente difícil continuar olhando para aqueles olhos pertubadores e tranquilos. Ele acabara de se levantar, a barba que começava a acinzentar o rosto esculpido a cinzel, a camiseta colada ao tronco, os shorts, os chinelos de dedo... O antebraço empunhando a xícara de café... um arrepio nascia no meu cóccix e morria em minha nuca, todos os pêlos do meu corpo se levantaram, mas eu mantinha a pose firme. E falava, falava, falava. Finalmente estaquei. O diálogo que eu esperava havia nascido e morrido monólogo. Meus olhos o inquiriam, exigiam dele uma reação.
- Deus te abençoe. - ele disse.
Como se não houvesse outro lugar no mundo para o meu corpo, me achei em seus braços sendo carregada para o quarto. Pela primeira vez na minha vida não achei ruim ter um sermão meu ignorado.

Ele

Ela entrou com aquele vestido roxo de amarrar na cintura. Eu adorava a maneira com que ele envelopava seu corpo, a maneira como o decote descia seu colo: ousado e sóbrio. Eu ainda tomava meu café e ouvia as primeiras notícias da manhã pelo rádio. Ela desligou a maquininha de fazer barulho: queria minha atenção exclusivamente para si. Meus olhos pelo menos já pertenciam a ela desde o momento em que pusera os pés na cozinha. Estava frio e, além do vestido, usava aquele sobretudo de malha preta e meias calças da mesma cor. Nos pés, aquele sapatinho fechado, de tecido, baixinho. Ela sempre o calçava quando queria parecer séria. Falava, falava, falava e eu ia saboreando meu café amargo, imaginando a que altura de sua coxa a meia terminaria, o contraste de sua pele alva com o negro da meia. Seus olhos vermelhos me fulminavam através das lentes dos óculos de armação grossa e escura que amadureciam um pouco seu rosto de menina e contrastavam belissimamente com o louro dos seus cabelos, ainda molhados. Seu corpo exalava cheiro de banho. Ela finalmente parou de falar. Seu olhar exigia de mim algum tipo de reação.
- Deus te abençoe. - eu disse.
Com todo o carinho e reverência que merece uma santa em procissão, levei-a em meus braços para o quarto e fizemos amor a manhã inteira.

7.7.09

Perdendo Dentes

Entrei no banheiro e me coloquei em frente ao espelho do armarinho. Era definitivamente eu. Fui abrindo a boca devagar, passando a língua pelos dentes de cima, da parte da frente. De repente, percebi que um deles estava meio mole. Era quase imperceptível, mas estava mesmo meio solto. Eu comecei a empurrá-lo, pra frente e pra trás, com a língua. E sentia que ele se movia, bem pouquinho, mas se movia, em relação aos outros dentes. Decidi continuar aquele procedimento, agora usando os dedos. O dente pareceu ceder mais um pouco.
Comecei a pensar no tempo transcorrido desde minha última visita ao dentista. Fazia mais de 10 anos. Eu cuidava relativamente bem dos meus dentes: escovava-os duas ou três vezes por dia, passava o fio dental uma ou duas vezes por semana, raramente comia doces... Nunca sentia dor em nenhum deles. Vez ou outra inspecionava-os. Nunca encontrei nada, exceto por algum tártaro, bem de leve, devido ao fato de eles serem muito tortos. E por isso acreditava que estava tudo bem.
O presente me mostrava que eu estava enganado. Dentes saudáveis não se movem.
Tentei me lembrar se eu havia batido a boca em algum lugar, ou se alguma coisa havia me acertado, mas nada me ocorria. E enquanto eu pensava, continuava empurrando o dente para frente e para trás. Percebi que os dois outros dentes que cercavam aquele com o qual eu já brincava também pareciam estar moles. Sim. Estavam os três meio soltos. Não eram só eles! Os quatro dentes da frente da parte de baixo também estavam moles. Comecei a me desesperar. Mas ao mesmo tempo não conseguia parar de mexer com eles. De repente, o de cima, o primeiro a se mover, se soltou em minha mão!
Eu me via no espelho, com um grande espaço vazio na arcada superior. Olhei para a pia e soltei o dente. Assisti o bloquinho branco acertar a louça da pia, ecoando alto dentro do banheiro, e depois escorregar para dentro do ralo.
Eu ainda estava de boca aberta, literalmente, com o que acontecia, e senti que mais alguma coisa estava solta na minha boca. Agora era um dente de baixo. De repente, outro e mais outro. E eu os cuspia na pia, estupefato. Sentia minhas têmporas latejarem mais forte, mais rápido. Como poderia sair para trabalhar com aquela boca banguela? E os dentes continuavam se soltando. E eu os cuspia no pia, aos montes, o barulho dentro do banheiro apertado era ensurdecedor.

Ontem sonhei que estava perdendo dentes. Levantei esbaforido e corri para o banheiro. No espelho do armarinho aquele rosto era definitivamente eu, e eu estava acordado. Joguei um pouco de água no rosto para terminar de acordar e me encarei novamente. Alisava a barba que começava a querer apontar de novo, até que minhas mãos chegaram à minha boca. Toquei de leve os meus dentes com as pontas dos dedos.
Seria impressão minha ou eles estavam meio moles?

Pra Onde?

Onde cê vai?
Sei lá
Tô indo

Vou pra casa de um amigo
Vamo tomá uma
Trocar uma idéia
Ver um filme

Vai pra onde?
Sei lá
Vô indo

Vou pra casa de uma amiga
Escutar ela falar
Fazer um sarau
Tomar um argentino

Tá indo pra onde?
Sei lá
Tô saindo

Vou dar uma volta na lagoa
Correr um pouco
Caminhar pra pensar
Tomar água de côco

Mas onde?
Sei lá
Por aí

Talvez eu leve o violão

Dentro do Mar

...que o mar me atrai
...que o mar me chama

E eu tenho medo, tanto medo

Dentro do mar eu me perco
E eu não me desespero
É tão gostoso

E eu tenho medo, tanto medo

Mas nem sempre tem alguém por perto pra me resgatar
Nem sempre tem quem me tire lá de dentro

E eu fico por horas lá

E bebo aquela água salgada

E deixo de respirar

E me perco

Não me desespero

E muitas vezes...
Eu morro.
Eu morro.
Muitas e muitas vezes eu morro dentro desse mar.

É confortável, reconfortante
Cômodo é morrer dentro do mar

E eu tenho medo, tanto medo

4.7.09

Sexta à Noite

O Accord prata vinha encostando junto ao meio-fio devagarinho, de faróis baixos. As duas morenas de salto alto, a primeira usando uma mini-blusa branca muito decotada, que revelava o sutiã vinho, e um micro-short amarelo ovo que garroteava suas grossas coxas cor-de-feijão, a segunda vestia um mini-tubinho preto, uma tarja preta que tapava apenas seus seios e sexo, desfilaram juntas em direção à beirada da calçada.
Dentro do carro, dois homens. Um mais jovem, cerca de 35 anos, usava uma camisa preta, jeans e sapatos de couro, de grife certamente, tinha os cabelos muito pretos e a pele branca, esverdeada na região da barba, e sorriso odontologicamente perfeito. Outro mais velho, usava uma camisa azul folgada, calça de brim e sapatos de couro marrom, tinha cabelos grisalhos, escassos no alto da cabeça e mais densos e compridos próximo à nuca, usava óculos de armação marrom avermelhada.
O primeiro homem, o mais jovem, se debruçava pela janela do banco do passageiro, exibindo os dentes perfeitos enquanto cumprimentava as duas morenas.
O segundo homem, apertava firme o volante do carro com as duas mãos, a coluna encurvada para frente, seu tronco esticando o cinto de segurança, o rosto muito próximo ao pára-brisa, os olhos arregalados, a boca fechada, o maxilar latejava nas laterais do seu rosto.
O carro finalmente estacou. A morena de tubinho se inclinou apoiando o antebraço direito no teto do carro enquanto ouvia os galanteios do homem mais jovem. A outra, de shortinho amarelo, continuava o desfile na calçada para o rabo de olho do homem mais velho.
- A gente vai dar a volta no quarteirão. - disse o moço dos dentes perfeitos.
O carro voltou a se movimentar.
- Cê tem certeza que isso é uma boa idéia? - o homem de óculos perguntava, enquanto seus olhos ainda captavam o andar gingado das moças que iam ficando para trás pelo retrovisor.
- Relaxa, Ferreira! Relaxa! Vamo curti, cara! Hoje é sexta, pô! Até quando cê vai ficar nessa?
O moço então dizia para o homem de óculos continuar a volta no quarteirão. Relembrava-o que ali era a Zona Norte, onde ninguém os conhecia. Além disso, a menos de 100 metros de onde estavam havia um drive-in. Ele continuava encorajando o amigo dizendo que pegariam duas cabines para terem alguma privacidade.
- Mas, não esquece, quando cê terminar, a gente troca. Quero comer as duas, hein, Ferreira! Manda a sua pra mim também. Tem certeza que não quer um azulzinho, véio? Né vergonha pra ninguém não, viu?
- Tenho.
Terminaram a volta no quarteirão e reencontraram as moças. O moço desceu do carro, segurando a porta aberta para a morena do shortinho amarelo entrar em seu lugar. Depois abriu a porta de atrás e gesticulou com um sorriso para a de tubinho preto se acomodar no banco traseiro, onde ele a acompanharia.
Com todos devidamente acomodados, o carro partiu mais uma vez. Chegaram ao tal drive-in, onde o senhor de óculos pediu duas cabines. Entraram e estacionaram o carro na cabine 7. O moço saiu do carro, e caminhou até a cabine 8 de mãos dadas com a morena de tubinho preto.
Agora, estavam a sós. A mulher se colocou de lado em seu assento para olhar para aquele homem maduro ao seu lado, ia começar a falar quando ele perguntou, sem olhar para ela:
- Como devo te chamar?
- Rose.
- Rose, pode me fazer um favor? Desce do carro e vai ali pra frente, junto a parede, onde eu posso te ver.
A mulher sorriu, mascando o chiclete. E olhando para ele, desceu lentamente do carro, ao colocar os dois pés para fora, levantou-se exibindo o volume das nádegas apertadas dentro do shortinho, como penas de pavão. Caminhou lentamente para a frente do carro. Os fárois, holofotes em um palco, a iluminavam.
- Quer que eu tire a roupa? - ela perguntava sorrindo com as mãos na cintura.
- Não, caminha de um lado pro outro, como cê tava fazendo na rua.
Ela sorria e agora desfilava sem olhar para ele, como se o ignorasse propositalmente. Ele tirou o cinto de segurança, e esfregou o rosto. Seus olhos eram dela. Dentro do bolso da camisa pegou o maço de Benson & Hedges e acendou um. Sua mão tremia um pouco. Os cabelos negros compridos da mulher balançavam suavemente, ele percebia as curvas das nádegas e dos seios se salientarem quando ela ficava de perfil para fazer um giro naquela passarela improvisada, observava cada detalhe do corpo daquela linda mulher.
Finalmente, ele desceu do carro, apagou o cigarro no chão com a sola do sapato e foi até ela. Ela, agora parada, as mãos na cintura, olhava para ele, sempre sorrindo.
- E agora?
Ele a agarrou e a jogou sobre o capô do carro, ainda quente, e atacou-a como um esfomeado a um prato de comida. Suas mãos percorriam e apertavam com força a carne tenra daquele corpo. Sua boca arfava, beijava, mordia. O cheiro vulgar do perfume da moça o embriagava ainda mais. Devorou a morena ali mesmo, sem nem tirar a roupa.
Fechou o zíper e se arrastou para dentro do carro novamente. Enquanto a moça se recompunha, ele ofegava dentro do carro e acendia outro cigarro. A moça o deixou seguindo para a cabine 8.
Dentro do carro, ele finalmente conseguia não pensar. Apenas saboreava aquele cigarro. O melhor dos últimos 3 anos.
Não muito tempo depois seu amigo ressurgia no retrovisor, escoltado pelas duas morenas. Os três sorriam muito e entraram juntos no banco de trás.
- Ferreira, me deixa em casa com elas.
O senhor de óculos, calmamente obedeceu. Alguns minutos depois, os três ocupantes do banco traseiro desciam. Ele, enfim sozinho, ligou o rádio e foi embora, acompanhando a bossa que tocava com um assovio baixinho, pensando no mar.