13.2.11

Loteria

O Bilhete de Loteria

Entrou no avião em meio à massa que ia se acumulando nas poltronas. Aquele movimento de caminhar um pouquinho e esperar um pouquinho com a impaciência estampada na cara, como se todos os outros passageiros fossem culpados por voar naquele dia com ele. Era assim mesmo que se sentia quando entrava em um ônibus ou avião. Queria que todos desaparecessem. Não queria ter o ônibus ou o avião só pra ele. Não, não era esse o caso. Se dava mais do que por satisfeito com sua poltrona. Sempre escolhia o corredor, para caso precisasse ir ao banheiro, fazê-lo esbarrando na menor quantidade de gente possível, o número ideal sendo zero. Bom, mas o caso não era ter mais poltronas para si. Nem mesmo mais espaço nas poltronas, embora, como todos que utilizavam meios de transporte coletivo, percebia que os assentos cada vez mais iam diminuindo. Ainda assim, não precisava de mais espaço em seu assento. Mas o incomodava enormemente esperar que os outros passageiros se acomodassem. Aquele andar lento de quem procura o assento, conferindo por sob os óculos de míope o número de cada poltrona até encontrar a sua. E depois a bagagem de mão. Momentos intermináveis de espera atrás daquela senhora que não percebe que o volume de sua bolsa é muito maior do que comportam os bagageiros. Muitas bufadas depois, chegava finalmente a seu assento. Um oásis de paz. Na verdade, nem sempre. Ele, como já mencionado, se dava mais do que por satisfeito com sua poltrona. Mas ter que ceder espaço de seu assento, milímetros que fossem, era ainda pior do que esperar a onda lenta de entrada no avião ou no ônibus. E daí sua ira ao viajar ao lado de gordos. Odiava os gordos. Odiava o suor mais abundante, talvez proveniente da força extra que precisavam empregar para carregar aquele peso extra. Odiava o “com licença” dos obesos que nunca conseguiam passar por outras pessoas sem tocá-las com a pança. E odiava, acima de tudo, a maneira amorfa como os gordos transbordavam em seus assentos. Era incrível como tinha azar! Parecia que sempre viajava ao lado de um gordo. E sempre um gordo, nunca uma gorda. Sempre um gordo, pouco asseado.
Desta vez não foi diferente. Teve uns 5 minutos de paz e tranqüilidade, quando um senhor já de idade, com os cabelos inconfundivelmente pintados, penteados para trás, vestindo um terno cinza e suando como se tivesse acabado de correr uma maratona pediu o famigerado “com licença”. Era humanamente impossível permitir que o senhor, certamente um devorador de toucinho, se sentasse, sem que o irritado viajante tivesse de se levantar. Isso era justo? Claro que não. Se sentia punido por ter acordado mais cedo, por ter se preparado melhor do que o gordo de cabelo pintado, por ter sempre se cuidado, ter estado atento à alimentação e por ter sempre procurado manter-se em forma com exercícios regulares. Isso não era justo. Levantou-se sem olhar na direção do gordo que continuava pedindo licença e agora acrescentava um perdão para cada centímetro que vencia com sua banha.
Finalmente voltou a se sentar. Percebeu logo que não poderia usar o apoio de braço do lado direito. Era impossível para o gordo de terno manter seu corpanzil dentro do espaço de seu assento. O gordo o cumprimentou e se apresentou. Ele apenas acenou com a cabeça. Puxou logo uma revista que havia no bolso da poltrona da frente, como quem diz: “Não estou para conversa. Em especial, com o senhor, que roubou a chance de que eu tivesse uma viagem tranqüila.” Mas o gordo não parecia ter entendido a mensagem. Pediu desculpas mais uma vez por tê-lo feito se levantar. Explicava que atrasara um pouquinho pois tinha feito uma paradinha na lotérica para fazer uma fezinha. O gordo ria de sua própria história, enquanto o viajante irritado continuava com a cara na revista, embora não conseguisse se concentrar o suficiente para ler uma linha sequer do artigo que tinha diante de seus olhos. Isso sempre acontecia: se alguém falasse algo que não o interessava, era inútil tentar se concentrar em algo mais. Ele até havia batizado o fenômeno: paradoxo da atenção. E o gordo continuava falando e sorrindo.
- Eu nem sei pra quê fiz essa aposta. Mas, sabe como é, no final do ano, todo mundo gosta de fazer uma fezinha, né? Acho que fica mais fácil de conversar com as pessoas quando procuramos cultivar certos hábitos comuns a muitas delas. E eu gosto muito de conversar. Você também fez uma aposta?
- Não.
- Pois é. Eu fiz. – enfiou a mão no bolso de dentro do paletó, não sem dificuldade, e sacou o bilhete. – E tenho certeza de que daqui sai alguma coisa. – brandia o bilhete orgulhoso, como se fosse um troféu.
O gordo continuou a falar e suar e o viajante irritado desistiu de fingir que lia. Devolveu a revista ao seu lugar de origem e se apoiou no braço da cadeira que havia sobrado. Testou a firmeza do assento e finalmente apoiou o queixo sobre a mão esquerda, enquanto olhava para o gordo à sua direita, sem a menor pretensão de parecer simpático ao que o homem rotundo falava.
O homem dizia que não tinha filhos ou sobrinhos. Era filho único. Os pais, obviamente, já haviam falecido havia muitos anos. Dedicara sua vida aos negócios e nunca havia se casado, embora afirmasse ter tido várias amantes. Dizia que os grandes prazeres de sua vida eram, nessa ordem, o trabalho, a comida e as mulheres. Gostava muito de cozinhar para suas amantes, embora soubesse que o que as atraíam mesmo era seu dinheiro.
Parou de falar de repente. Olhava para o bilhete com um ar melancólico.
- Mas o que vou fazer com esse dinheiro se eu ganhar? Não, Deus permita que alguém que precise mais do que eu ganhe.
O viajante irritado teve que se desculpar e se levantar. Ver aquele homem obeso pronunciar aquela frase fez com que ele tivesse vontade de vomitar. Foi ao banheiro.
No lavatório apertado, lavou o rosto. Quanto retornava a seu assento, as comissárias de bordo serviam o lanche. Isso fez com que ele tivesse que esperar até que o carrinho ultrapassasse a altura de sua poltrona para voltar a se sentar. Tentou ainda argumentar com uma das comissárias, ao que ela respondeu:
- O senhor quer que eu faça o quê?
Companhias aéreas populares. Qualquer um pode voar e ser tratado como lixo, pensou. Ficou lá de braços cruzados e cara feia para todos os outros passageiros que iam recebendo sua barrinha de cereal e seu copinho de guaraná com duas pedrinhas de gelo.
Quando finalmente chegou a seu assento, percebeu que o gordo dormia profundamente. A cabeça pendia para a frente e a ponta da língua escapulia pela boca entreaberta. O bilhete parecia querer cair da mão do homem a qualquer momento. Ele tentava se decidir se devia acordar o homem ou não. Se o bilhete caísse, seu imenso corpo jamais permitiria que ele o alcançasse no chão. E seria uma situação muito constrangedora para qualquer um ter que pedir para alguém alcançar um pertence seu a seus pés por que sua pança o impedia de fazê-lo. O bilhete finalmente, e caprichosamente, escorregou pelas pontas dos dedos do gordo inconsciente. Indo parar bem à frente do viajante irritado. Ele se inclinou para frente para alcançá-lo, quando ouviu a campainha que indicava que os avisos de apertar os cintos tinham se iluminado. Uma comissária que passava, pediu que ele se colocasse ereto na poltrona. Achou engraçado ouvir a moça dizendo a palavra ereto, mas apenas mostrou o bilhete que havia apanhado e obedeceu.
Decidiu que deveria acordar o gordo para devolver o bilhete resgatado. O avião iniciava o pouso. Cutucou uma, duas, três vezes. Chamou, empurrou e nada. O homem não se movia. O avião finalmente parou e ele desatou o cinto. Precisava devolver o bilhete ao homem antes de sair do avião. Enquanto tentava, sem sucesso, despertá-lo, percebia que uma fila ia se formando. Aquilo já era demais. Passou a falar cada vez mais alto enquanto empurrava o gordo contra o terceiro passageiro da fileira, até agora não mencionado na história, quando este sugeriu: talvez o gordo estivesse morto. Sentiu um frio correr toda sua espinha.
- Como podemos ter certeza?
- Tomamos o pulso.
Cada um pegou um dos braços do gordo.
- Nada.
- Aqui também nada.
- Será que estamos fazendo certo?
- Vamos chamar uma comissária.
Mas antes que o fizessem, outro passageiro, que se aproximava lentamente ao sabor do ritmo da fila, vindo do fundo do avião, ouvira a conversa e se apresentou:
- Com licença. Sou médico.
Tomou o pulso do gordo e o segurou por alguns segundos, que para o viajante irritado pareceram séculos. Ele não se conteve:
- E então?
- Não tem pulso. Preciso me aproximar. O senhor, por favor, se levante.
O médico agora mexia com todo o corpo do homem, primeiro chegou seu ouvido junto à boca do gordo, depois abria os olhos do homem e como uma pequena lanterna tentava os estimular. De um golpe, e com a ajuda do terceiro passageiro tirou o gordo do assento e milagrosamente encaixou o enorme corpo entre as duas fileiras de cadeiras. Parecia tentar ressuscitá-lo, massageando seu peito e soprando em sua boca.
O passageiro irritado olhava e não conseguia enxergar nada. Como, em alguns instantes, um homem que conversava e ria parecia se esvanecer para sempre diante de seus olhos?
O médico finalmente interrompeu sua manobra. Se levantou de cima do corpo do gordo. Suava muito e estava ofegante.
- O senhor é parente?
O viajante irritado demorou um pouco para responder. Parecia não conseguir absorver o que acontecia à sua volta.
- Hein? Não. Acabei de conhecê-lo.
- Então, pode ir.
Como assim, pode ir? Um homem acabava de morrer e era isso que aquele médico de açougue dizia: pode ir? Mas o viajante estava tão chocado, tão surpreso - não só com o fato que acabava de presenciar, mas também com o como aquilo o afetava em níveis que ele jamais imaginara -, que não teve outra reação a não ser se afastar lentamente do corpo. Ia saindo devagar, embora, o avião a essa altura já estivesse vazio, enquanto as comissárias, piloto e co-piloto agora bombardeavam o médico com perguntas. O terceiro passageiro também saía do avião. Mas não parecia afetado por nada daquilo. Simplesmente saiu, conferindo as horas no relógio de pulso e acelerando o passo rumo ao portão de desembarque.
O viajante irritado parou junto à primeira parede que encontrou e se encostou. Achou por um momento que fosse perder a força das pernas. Dois homens passaram por ele correndo, carregando uma maca, em direção ao avião. Foi quando se tocou de que ainda segurava o bilhete do gordo. Lembrou-se de tudo o que gordo dissera, sobre não ter família, não ter herdeiros. Tentava se convencer de que não havia nada de errado em ficar com o bilhete. Além disso, quem poderia saber se aquele bilhete seria mesmo premiado? Guardou-o no bolso da calça. Olhou pra trás mais uma vez. Viu ainda os dois homens tirando, com muito esforço, o corpo do gordo na maca de dentro do avião. Queria dizer alguma coisa, uma despedida talvez, agradecer por alguma coisa que não sabia o quê, encomendar a alma do pobre homem a Deus. Mas não era religioso e nunca fora bom com as palavras. Enquanto aquele cortejo formado pelo médico e pela tripulação passava por ele, fez, de maneira bem discreta, quase imperceptível, o sinal da cruz. E seguiu atrás do cortejo até o ponto em que viu a placa indicando o portão de desembarque. Deu uma última olhada para trás, respirou fundo e foi reclamar sua bagagem.


7.2.11

Metrossexual

Metrossexualidade Imposta

Deitado, depois do almoço, pensava e tentava se decidir: vejo um filme, leio um livro... nada. Deixou aquela preguiça gostosa do período absortivo tomar conta da carcaça e foi perdendo a consciência devagarinho. Ela estava por ali, mexendo em alguma coisa, com os óculos que odiava e, por isso, só usava em momentos de grande intimidade, como aquele.
Ele sentiu, quase sem entender, no meio daquela obnubilação da siesta, que ela se aproximava. Sentiu que ela se deitava sobre seu corpo, bem lentamente, sem fazer barulho. Talvez ela quisesse se sentir próxima a ele, talvez quisesse sentir mais uma vez o calor do corpo dele, talvez simplesmente quisesse participar daquele cochilinho nos braços dele, talvez ela quisesse que o cochilinho se transformasse em outra coisa... Mas ele nem se deu ao trabalho de abrir os olhos, tamanha era a preguiça e embora sua mente já sorrisse. Ele podia sentir o cheiro do corpo dela, ouvir a respiração lenta e bem ritmada.
- Você já pensou em tirar esse fiozinhos entre as duas sobrancelhas?
Acordou de um susto!
- Hein? Nem vem. Sai pra lá.
Tentou esquivar, tentou se levantar, mas já era tarde demais. Ela estava deitada inteira sobre o corpo dele e já tinha nas mãos a maldita pinça. Ele lutava, sem muito jeito, jamais teria coragem de reagir fisicamente a qualquer coisa que ela fizesse.
- Você vai ficar mais lindo. Todo mundo faz isso hoje em dia, sabia?
E ele choramingava e se debatia enquanto ela continuava argumentando e puxando aqueles pelinhos que ele próprio jamais percebera a existência. Ele dizia que era homem e que homens não faziam a sobrancelha.
- Ai, que troglodita você! A sua masculinidade não está nesses pelinhos não, viu? Agora fica quietinho que eu tô quase terminando.
Ele continuou choramingando e ela argumentando, carinhosa, porém firme.
- Pronto! Ficou lindo! Quer que eu pegue o espelho pra você ver?
Ela correu até o banheiro. Ele permaneceu na cama, encolhido, com as pernas abraçadas por seus próprios braços, os olhos arregalados. Sabia que jamais sua vida voltaria a ser a mesma.