30.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo VI

A mulher e a menina acordaram com o barulho de vozes gritando, protestando. Mais baldes haviam chegado. Ouve novamente a mesma divisão de antes, os viajantes eram divididos em grupos menores e cada um desses grupos ficava com um balde. Outra vez empurrões, mais protestos e enfim toda a comida havia se acabado. Todos haviam conseguido pelo menos um punhado da papa branca.
Era espantoso perceber como se transformavam os olhos e as feições da menina depois de se alimentar. A mulher não sabia se os efeitos eram só uma percepção mais alegre de quem tem a fome aplacada, ainda que não completamente, ou se, de fato, envolviam também o desabrochar de um sorriso no rosto de uma criança alimentada, ainda que de maneira muito parca. Decidiu que as duas coisas deveriam acontecer.
Olhou em volta e percebeu que a irmã da morta estava sentada em um canto. Observou que suas mãos não estavam úmidas como a dos demais. Ela não deveria ter comido. Estava sentada no chão abraçando as próprias pernas com a cabeça apoiada entre os joelhos. Balançava todo o corpo para frente e para trás nervosamente. A mulher decidira ficar mais próxima daquela outra. Tentava conversar com ela. Fazia perguntas. A menina também tentava animá-la passando a mão por seus cabelos e murmurando a mesma canção que a mulher havia cantado para ela. Mas aquela mulher não tinha forças para mais nada. Ela havia sido a única daqueles viajantes que não havia se alimentado. Seu olhar ficava parado em um canto. Como se olhasse para algo de muito significado quando na verdade não olhava para nada, não via nada do que estava ali em sua frente.
O príncipe se aproximou, sempre acompanhado daquele outro homem. A mulher agora observava como era grande e forte aquele homem. Suas pernas pareciam troncos de árvores. O príncipe parecia um menino perto de seu companheiro.
Abaixando-se lentamente ao lado da mulher, o príncipe varria com o olhar todo o ambiente ao redor. Sua testa franzida, suas sobrancelhas quase se encontravam, seus olhos apertados como se quisessem e pudessem ver além do que realmente enxergavam. Sua respiração era lenta e curta, inaudível.
Virou-se para a mulher e disse a ela que chegara o limite: ele tinha que reagir em nome de seu povo. A mulher se assustou. Dizia que não sabiam o que estava atrás daquela porta. Tentou aconselhá-lo a não fazer nada, a se resignar. O príncipe respondeu, com calma sobrenatural, que aquele era o dever dele. Já estava decidido. Ela então perguntou sobre o rapaz dos baldes. Ele parecia ser da mesma terra que aqueles viajantes. Mas o príncipe não respondeu. Apenas se levantou e foi caminhando para trás da escada seguido por seu robusto companheiro.
A mulher então puxou a menina para si. Abraçou-a forte e disse-lhe que ficasse sempre junto a ela. Em seguida, se dirigiu à mulher em luto pela irmã. Chamava-a e perguntava seu nome. Mas ela não respondia. Nem sequer retornava o olhor suplicamente da mulher, que enfim, desistiu.
Puxando a menina pela mão, a mulher abandonou a outra em luto mudo e se afastou o máximo que pode das escadas. A porta não se abriu mais naquele dia. O príncipe não saiu de sua posição. E a mulher não tirou seus olhos cansados dele até que se fecharam.

25.7.08

On The Way Home

When the dream came
I held my breath with my eyes closed
I went insane
Like a smoke ring day when the wind blows
Now I won't be back till later on
If I do come back at all
But you know me, and I miss you now
In a strange game
I saw myself as you knew me
When the change came
And you had a chance to see through me
Though the other side is just the same
You can tell my dream is real
Because I love you, can you see me now
Though we rush ahead to save our time
We are only what we feel
And I love you, can you feel it now

Acho que a letra é do Neil Young (se alguém tiver informação mais acertada, please let me know), mas gosto da versão cantada pelo Renato Russo no Acústico.

FAQC

23.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo V

A mulher se aproximou do grupo que velava a morta. Reconheceu alguns dos que ali estavam. Não sabia seus nomes, mas lembrava-se de já tê-los visto. Além dos que reconhecia, os outros ali também pareciam ser de sua terra. Observava isso pela maneira como velavam a morta. Obviamente, alguns dos rituais não poderiam ser obedecidos uma vez que aquelas pessoas não tinham acesso a nenhum instrumento, e muito menos liberdade para se locomoverem. Tudo o que tinham era o que cada um tinha: a companhia dos outros. Desde a criança órfã até o príncipe, ali a única riqueza ou privilégio era a voz e o toque do outro. E de repente parecia aquilo tão caro, tão importante. A mulher abraçava a irmã da morta. A menina também. Depois vieram o princípie e aquele homem que sempre o acompanhava. E por fim todos aqueles que dividiam aquela cela vieram demonstrar apoio à irmã da morta: alguns abraçavam, outros apenas seguravam sua mão por um tempo, outros meneavam a cabeça. E iam ficando por ali. Todos próximos.
Antes de anoitecer novamente, o rapaz dos baldes retornou. Não vinha sozinho. Tinha um ajudante. Ambos usavam muitas vestes que lhe cobriam as mãos e os braços, a boca e o nariz. O rapaz se dirigiu à irmã da morta. Disse-lhe que precisava levar o corpo. Ela quis protestar, mas o princípe a conteve dizendo alguma coisa a seu ouvido e abraçando-a. Nem o princípe nem o seu acompanhante tiravam os olhos do rapaz. Com a ajuda do outro homem de corpo coberto, o rapaz levou embora o cadáver. A irmã da morta chorava baixinho enquanto a luz ia diminuindo avisando aos viajantes que mais um dia se acabava.

22.7.08

Cheiro de Gente

Se deu conta disso no início de uma aula. Seus alunos iam tomando as cadeiras do auditório. Ele estava sentado à sua mesa, aguardando os dez minutos de tolerância estipulados pela reitoria. Era contra aquilo. Sempre o fora. Se a aula estava marcada para começar às 7, que começasse às 7, e não às 7 e 10. Não se importava com alunos que chegavam atrasados, desde que não atrapalhassem, não perturbassem. Mas o fato de a tolerância ser uma regra, fazia com que todos acabassem por chegar depois da tolerância. Não valia a pena começar no horário. O quórum era muito baixo. Ou seja, ele perdia 10 minutos todos os dias. Já havia tentado fazer palavras cruzadas nesse tempo, ou jogar sudoku, mas se irritava por ter que parar para começar a aula. Não gostava de parar no meio de nada, não gostava de interrupções, de forma alguma.
Mas, enfim, do que se deu conta o professor? Dos cheiros.
Aquele não era um dia quente. Era uma manhã de outono. Os alunos entravam agasalhados. Iam entrando no auditório, tirando parte dos acessórios que usavam para se proteger do frio de fora: gorro, cachecol, casacos mais pesados... não era um dia quente mesmo. Estava frio! O professor os observava. Os alunos se sentando, misturados aos casacos que iam sendo depositados sobre as carteiras vazias, pareciam partículas em suspensão que iam se sedimentando, à medida que a agitação do frasco, no caso o auditório, ia diminuindo. Até mesmo o zum-zum-zum de vozes que se perguntavam sobre a noite anterior, reclamavam do time que havia perdido um jogo importante, comentavam que o período de provas se aproximava, até isso ia diminuindo graduamente.
O professor olhou para trás, por cima do ombro, abaixando um pouco a cabeça para enxergar, por cima dos óculos que só usava para ler, os ponteiros do relógio que ficavam sobre a longa lousa: o braço pequeno passava um pouco do número 7, enquanto o longo ia se encontrando ao número 2. Tá na hora, pensou. Virou-se para a frente novamente. Ainda sem se levantar da mesa. Olhou em volta e percebeu que o zum-zum-zum já tinha se dissipado. Os alunos o olhavam, o encaravam, o esperavam. Começou a se levantar e estancou. Que cheiro era aquele? Um cheiro meio adocicado, mas não de uma forma agradável. Deu umas fungadinhas discretas, não queria demonstrar o que sentia, e se levantou. Seu nariz sempre fora sensível.
Lembrava-se com clareza da primeira vez que havia andando de trem em Paris. O trem estava lotado e em determinado momento teve que sair do vagão, muito antes de chegar a seu destino. Se conteve como pode. Seu francês não era então o fluente de hoje. E mesmo que o fosse, seria impossível conter o calor que lhe subia as entranhas e falar ao mesmo tempo, em que língua fosse. E assim não conseguiu chegar ao banheiro público da estação, tendo que se livrar daquele líquido ocre e acre em uma das lixeiras que havia ali.
Sentia agora aquele mesmo cheiro, que empesteava o ambiente, parecia adentrar suas narinas e seus poros, tornava o ar mais denso. Cheiro de gente. O verdadeiro cheiro de gente. Desodorante não tem cheiro. Perfume não tem cheiro de gente. Nem o têm os sabonetes e xampus. Todas essas substâncias químicas foram inventadas justamente para disfarçar os odores exalados pelo corpo humano. Não é necessário o calor. No fundo, por baixo de perfume, cremes e loções, mesmo em climas frios, está lá o cheiro da pele, e das secreções humanas. Não existe animal mais mal-cheiroso do que o homem.
Não disse nada. Saiu da sala e se dirigiu para o banheiro mais próximo.

20.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo IV

Naquele dia não trouxeram mais comida. A mulher e a menina já se aninhavam para dormir, quando a porta no alto da escada se abriu mais uma vez e novamente desceu por ela o rapaz dos baldes. Dessa vez, porém, não trazia nenhum. Dois homens se aproximaram do rapaz. Um deles colocou a mão no peito do rapaz impedindo que ele passasse. O outro fez uma pergunta. A mulher percebeu que falavam sua língua, mas não conseguiu distinguir o que o homem havia dito. Observou-o melhor e o reconheceu: era seu príncipe! Nunca havia visto-o daquela forma. Estava muito magro, praticamente nu, sua barba estava comprida.
O rapaz falava baixo e pausadamente. Também não era possível entender. Ele gesticulava pouco. Evitava olhar para os olhos de seu interlocutor. Procura fitar os próprios pés. Parou de falar e olhou para o príncipe como quem espera uma resposta. O príncipe acenou com a cabeça. O rapaz então pegou a mão do príncipe e beijou-a com respeito. O príncipe olhou para o outro homem que o acompanhava e este deixou o rapaz passar.
A mulher demorou um pouco a perceber, mas o rapaz vinha em sua direção. Comprimentou-a, respeitando a maneira com a qual a mulher estava acostumada a ser cumprimentada por outros homens em sua terra -- o que a deu certo conforto --, e perguntou se ela era a mãe da menina. A mulher disse que sim sem hesitar. Tinha medo de que as separassem.
O rapaz então se apresentou. Seu nome não parecia com os nomes com os quais a mulher estava acostumada. Ele explicou que havia nascido no Novo Mundo. Por isso seu nome era diferente. Olhava para a mulher com um meio sorriso e olhos bem abertos. A mulher não disse nada. Ele então continuou dizendo que no Novo Mundo haviam pessoas que falavam diversas línguas diferentes pois cada uma vinha de um lugar. Parou novamente e olhou mais uma vez para a mulher com aquele meio sorriso. A mulher perguntou então o que aconteceria quando chegassem ao tal Novo Mundo. O jovem disse que ela trabalharia. E que a menina também trabalharia, assim que tivesse forças e tamanho suficientes. Mais uma pausa com meio sorriso. Ele prosseguiu dizendo que o melhor a fazer era pedir perdão ao Pai. A mulher não compreendera aquilo. Ele então explicou que o Pai era o nosso Criador. Acrescentou que o filho Dele estava sentado à sua direita, de onde podia ver tudo o que ocorria. A mulher estava cada vez mais confusa. O rapaz sorriu novamente. E disse a ela que pedisse forças ao Espírito Santo e então terminou aconselhando-a de que se lembrasse: havia só um Deus. A mulher não entendia mais nada.
Ouviu-se um grito. Uma mulher chorava sobre o corpo de outra. Gritava. Dizia que haviam matado sua irmã. Haviam envenenado-a. A mulher morta tinha manchas na pele. Parecia também ter perdido um pouco de sua cor.
O rapaz se aproximou. A mulher com quem conversava o seguiu, mas decidiu não chegar muito perto. Todos ali se apertavam para ver o que acontecia e ela temia mais um tumulto. O rapaz então se ajoelhou próximo ao corpo da mulher. Fez um gesto estranho com a mão direita, parecia desenhar uma cruz no ar. Disse então algumas palavras a irmã da mulher morta. Depois disso levantou os olhos para o céu e juntou as mãos. Começou a dizer algumas palavras em uma língua estranha. As pessoas o interromperam. Ele disse que orava pela alma daquela mulher. Mas ninguém compreendia o que ele dizia em sua prece e por isso não permitiram que ele continuasse. Ele fez novamente aquele gesto com a mão direita e se retirou. Antes de sair, disse a mulher com quem conversara que traria mais comida no dia seguinte. Ainda lançou um olhar na direção daquelas pessoas que o expulsaram. Balançou a cabeça e desapareceu fechando a porta atrás de si mais uma vez.

5.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo III


A mulher e a menina finalmente dormiram abraçadas uma a outra. Apesar de o ambiente ser escuro, era possível perceber se era dia ou noite através das frestas no teto, que se deixavam penetrar por raios de sol mais intensos em algumas horas do dia. E foi justamente um desses raios que veio acordar a mulher. Ela se sentia enauseada. Não entendia como poderia estar se sentindo assim. Não comia nada há quase dois dias. Talvez fosse por conta daquele balanço interminável das paredes. Pensou na menina que dormia em seu colo. Quando ela teria comido? Não sabia se resistiriam a mais um dia. Na chuva do dia anterior havia bebido um pouco de água. Não tivera coragem de beber das poças que se formavam no chão, como vira vários outros fazer, mas bebera um pouco da água que pingava do teto. O gosto não era bom. Não parecia limpa. Mas a sede que sentira fizera-a agradecer por aquele caldo. Ela estranhara o fato de a água estar um pouco salgada.
Enquanto averiguava mais uma vez o ambiente através da pouca luz, a porta no alto da escada se abriu mais uma vez. Agora ela não via um homem de pele clara. Via uma pessoa que muito se assemelhava àquelas com quem ela própria convivera. E embora não o conhecesse, o mero fato de ele se parecer com ela, fazia-a se sentir melhor. No entanto, ela percebeu que o rapaz usava roupas mais parecidas com as dos homens de pele clara. Ele descia as escadas e trazia em cada uma das mãos um balde. Pareciam estar cheios, pois ele tinha muita dificuldade. Ao chegar no pé da escada, o rapaz posicionou os baldes no primeiro degrau. Enxugou a testa com o braço e enfiou a mão dentro de um dos baldes trazendo para fora uma concha. Então o rapaz começou a dizer algumas palavras em voz alta o bastante para que todos ouvissem. Ela, a princípio, não entendera o que ele dizia, mas, de repente, reconheceu a palavra "água" no meio daquelas outras palavras estranhas.
Saltou em direção ao rapaz. E, como ela, outras pessoas iam fazendo. O rapaz, percebendo que um tumulto se formaria, agarrou os baldes e tentou subir correndo as escadas. Foi detido no entanto por um estrondo ensurdecedor. Todos pararam onde estavam. Ninguém mais se movia. Todos olhavam para cima.
O homem de pele clara que viera no dia anterior buscar o corpo do velho estava no alto da escada. Segurava aquele mesmo objeto longo. De uma de suas pontas saía fumaça. Ele disse algo ao rapaz dos baldes. O rapaz acenou com a cabeça e se virou lentamente para a parte mais baixa da escada. Colocou os baldes no degrau em que estava e disse que todos viessem com calma buscar a água ou eles se machucariam. Pediu que as mulheres e as crianças viessem primeiro. A mulher então foi se aproximando lentamente. Estava muito assustada. A menina não chorava, mas tremia muito. Ao chegar sua vez de receber a água ela perguntou ao rapaz onde estavam. Ele disse que iam para um lugar muito distante. Se referia a esse lugar como o Mundo Novo. Explicou para a mulher que estavam em um barco. Mas ela nunca havia visto um barco daquele tamanho. Perguntou ao rapaz se trariam comida. E ele disse que sim e pediu a ela que bebesse a água e retornasse ao lugar onde estava para que os outros pudessem também beber. A mulher colocou um pouco de água na boca, o quanto lhe foi permitido. Deu também água para a menina e retornou para junto da pilastra onde encontrara a garotinha chorando. Rapidamente a água dos baldes acabou. Alguns homens ficaram sem beber e gritavam. Porém, nenhum deles tinha coragem de subir as escadas. O rapaz se foi, levando os baldes vazios, fechando a porta atrás de si.
Os homens que não haviam bebido água resmugavam, esbravejavam. Alguns começaram a trocar empurrões. A mulher se recolheu a um canto com a menina. Tinha medo do que poderia acontecer ali. Muitas pessoas juntas, em pouco espaço, alguns pareciam doentes, todos tinham fome, todos tinham sede. Tentava imaginar o que cada um de seus companheiros de viagem teria passado antes de ser trazido para esse barco. Olhava em volta. Percebeu que a maioria das pessoas era jovem. Parecia mesmo que o único velho ali havia sido o homem que morrera ao pé da escada. Havia algumas poucas crianças. Olhava agora para a menina no seu colo novamente. A menina repentinamente deu um pulo. Apontou para o outro lado do aposento. Havia um rato enorme. A mulher já havia visto outros ratos ali. Mas os ratos não a assustavam. As pessoas, sim.
Não se passou muito tempo e a porta se abriu novamente. O mesmo rapaz trazia mais baldes, com a ajuda de um outro homem. Colocaram os baldes no alto da escada e o rapaz disse para baixo que havia mais água e também comida. Os homens se desembestaram escada acima. Houveram mais empurrões, mais insultos, e um deles chegou a despencar escada abaixo. Finalmente, um grupo conseguiu impor alguma ordem e entregaram cada um dos baldes a grupos de dez ou doze pessoas. A essas, outras que haviam ficado sem grupo, e sem balde, se juntavam. Em cada grupo, todos tentavam enfiar a mão dentro dos baldes ao mesmo tempo. Houve mais confusão, mais gritaria, mas no fim, todos pareciam ter conseguido pegar pelo menos um punhado daquela papa branca que havia no balde. A menina chupava seus dedos. Seus olhos pareciam mais alertas, mais brilhantes. A mulher, no entanto, sabia que a garota ainda tinha fome, pois a sua própria não havia sido saciada.