20.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo IV

Naquele dia não trouxeram mais comida. A mulher e a menina já se aninhavam para dormir, quando a porta no alto da escada se abriu mais uma vez e novamente desceu por ela o rapaz dos baldes. Dessa vez, porém, não trazia nenhum. Dois homens se aproximaram do rapaz. Um deles colocou a mão no peito do rapaz impedindo que ele passasse. O outro fez uma pergunta. A mulher percebeu que falavam sua língua, mas não conseguiu distinguir o que o homem havia dito. Observou-o melhor e o reconheceu: era seu príncipe! Nunca havia visto-o daquela forma. Estava muito magro, praticamente nu, sua barba estava comprida.
O rapaz falava baixo e pausadamente. Também não era possível entender. Ele gesticulava pouco. Evitava olhar para os olhos de seu interlocutor. Procura fitar os próprios pés. Parou de falar e olhou para o príncipe como quem espera uma resposta. O príncipe acenou com a cabeça. O rapaz então pegou a mão do príncipe e beijou-a com respeito. O príncipe olhou para o outro homem que o acompanhava e este deixou o rapaz passar.
A mulher demorou um pouco a perceber, mas o rapaz vinha em sua direção. Comprimentou-a, respeitando a maneira com a qual a mulher estava acostumada a ser cumprimentada por outros homens em sua terra -- o que a deu certo conforto --, e perguntou se ela era a mãe da menina. A mulher disse que sim sem hesitar. Tinha medo de que as separassem.
O rapaz então se apresentou. Seu nome não parecia com os nomes com os quais a mulher estava acostumada. Ele explicou que havia nascido no Novo Mundo. Por isso seu nome era diferente. Olhava para a mulher com um meio sorriso e olhos bem abertos. A mulher não disse nada. Ele então continuou dizendo que no Novo Mundo haviam pessoas que falavam diversas línguas diferentes pois cada uma vinha de um lugar. Parou novamente e olhou mais uma vez para a mulher com aquele meio sorriso. A mulher perguntou então o que aconteceria quando chegassem ao tal Novo Mundo. O jovem disse que ela trabalharia. E que a menina também trabalharia, assim que tivesse forças e tamanho suficientes. Mais uma pausa com meio sorriso. Ele prosseguiu dizendo que o melhor a fazer era pedir perdão ao Pai. A mulher não compreendera aquilo. Ele então explicou que o Pai era o nosso Criador. Acrescentou que o filho Dele estava sentado à sua direita, de onde podia ver tudo o que ocorria. A mulher estava cada vez mais confusa. O rapaz sorriu novamente. E disse a ela que pedisse forças ao Espírito Santo e então terminou aconselhando-a de que se lembrasse: havia só um Deus. A mulher não entendia mais nada.
Ouviu-se um grito. Uma mulher chorava sobre o corpo de outra. Gritava. Dizia que haviam matado sua irmã. Haviam envenenado-a. A mulher morta tinha manchas na pele. Parecia também ter perdido um pouco de sua cor.
O rapaz se aproximou. A mulher com quem conversava o seguiu, mas decidiu não chegar muito perto. Todos ali se apertavam para ver o que acontecia e ela temia mais um tumulto. O rapaz então se ajoelhou próximo ao corpo da mulher. Fez um gesto estranho com a mão direita, parecia desenhar uma cruz no ar. Disse então algumas palavras a irmã da mulher morta. Depois disso levantou os olhos para o céu e juntou as mãos. Começou a dizer algumas palavras em uma língua estranha. As pessoas o interromperam. Ele disse que orava pela alma daquela mulher. Mas ninguém compreendia o que ele dizia em sua prece e por isso não permitiram que ele continuasse. Ele fez novamente aquele gesto com a mão direita e se retirou. Antes de sair, disse a mulher com quem conversara que traria mais comida no dia seguinte. Ainda lançou um olhar na direção daquelas pessoas que o expulsaram. Balançou a cabeça e desapareceu fechando a porta atrás de si mais uma vez.

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