5.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo III


A mulher e a menina finalmente dormiram abraçadas uma a outra. Apesar de o ambiente ser escuro, era possível perceber se era dia ou noite através das frestas no teto, que se deixavam penetrar por raios de sol mais intensos em algumas horas do dia. E foi justamente um desses raios que veio acordar a mulher. Ela se sentia enauseada. Não entendia como poderia estar se sentindo assim. Não comia nada há quase dois dias. Talvez fosse por conta daquele balanço interminável das paredes. Pensou na menina que dormia em seu colo. Quando ela teria comido? Não sabia se resistiriam a mais um dia. Na chuva do dia anterior havia bebido um pouco de água. Não tivera coragem de beber das poças que se formavam no chão, como vira vários outros fazer, mas bebera um pouco da água que pingava do teto. O gosto não era bom. Não parecia limpa. Mas a sede que sentira fizera-a agradecer por aquele caldo. Ela estranhara o fato de a água estar um pouco salgada.
Enquanto averiguava mais uma vez o ambiente através da pouca luz, a porta no alto da escada se abriu mais uma vez. Agora ela não via um homem de pele clara. Via uma pessoa que muito se assemelhava àquelas com quem ela própria convivera. E embora não o conhecesse, o mero fato de ele se parecer com ela, fazia-a se sentir melhor. No entanto, ela percebeu que o rapaz usava roupas mais parecidas com as dos homens de pele clara. Ele descia as escadas e trazia em cada uma das mãos um balde. Pareciam estar cheios, pois ele tinha muita dificuldade. Ao chegar no pé da escada, o rapaz posicionou os baldes no primeiro degrau. Enxugou a testa com o braço e enfiou a mão dentro de um dos baldes trazendo para fora uma concha. Então o rapaz começou a dizer algumas palavras em voz alta o bastante para que todos ouvissem. Ela, a princípio, não entendera o que ele dizia, mas, de repente, reconheceu a palavra "água" no meio daquelas outras palavras estranhas.
Saltou em direção ao rapaz. E, como ela, outras pessoas iam fazendo. O rapaz, percebendo que um tumulto se formaria, agarrou os baldes e tentou subir correndo as escadas. Foi detido no entanto por um estrondo ensurdecedor. Todos pararam onde estavam. Ninguém mais se movia. Todos olhavam para cima.
O homem de pele clara que viera no dia anterior buscar o corpo do velho estava no alto da escada. Segurava aquele mesmo objeto longo. De uma de suas pontas saía fumaça. Ele disse algo ao rapaz dos baldes. O rapaz acenou com a cabeça e se virou lentamente para a parte mais baixa da escada. Colocou os baldes no degrau em que estava e disse que todos viessem com calma buscar a água ou eles se machucariam. Pediu que as mulheres e as crianças viessem primeiro. A mulher então foi se aproximando lentamente. Estava muito assustada. A menina não chorava, mas tremia muito. Ao chegar sua vez de receber a água ela perguntou ao rapaz onde estavam. Ele disse que iam para um lugar muito distante. Se referia a esse lugar como o Mundo Novo. Explicou para a mulher que estavam em um barco. Mas ela nunca havia visto um barco daquele tamanho. Perguntou ao rapaz se trariam comida. E ele disse que sim e pediu a ela que bebesse a água e retornasse ao lugar onde estava para que os outros pudessem também beber. A mulher colocou um pouco de água na boca, o quanto lhe foi permitido. Deu também água para a menina e retornou para junto da pilastra onde encontrara a garotinha chorando. Rapidamente a água dos baldes acabou. Alguns homens ficaram sem beber e gritavam. Porém, nenhum deles tinha coragem de subir as escadas. O rapaz se foi, levando os baldes vazios, fechando a porta atrás de si.
Os homens que não haviam bebido água resmugavam, esbravejavam. Alguns começaram a trocar empurrões. A mulher se recolheu a um canto com a menina. Tinha medo do que poderia acontecer ali. Muitas pessoas juntas, em pouco espaço, alguns pareciam doentes, todos tinham fome, todos tinham sede. Tentava imaginar o que cada um de seus companheiros de viagem teria passado antes de ser trazido para esse barco. Olhava em volta. Percebeu que a maioria das pessoas era jovem. Parecia mesmo que o único velho ali havia sido o homem que morrera ao pé da escada. Havia algumas poucas crianças. Olhava agora para a menina no seu colo novamente. A menina repentinamente deu um pulo. Apontou para o outro lado do aposento. Havia um rato enorme. A mulher já havia visto outros ratos ali. Mas os ratos não a assustavam. As pessoas, sim.
Não se passou muito tempo e a porta se abriu novamente. O mesmo rapaz trazia mais baldes, com a ajuda de um outro homem. Colocaram os baldes no alto da escada e o rapaz disse para baixo que havia mais água e também comida. Os homens se desembestaram escada acima. Houveram mais empurrões, mais insultos, e um deles chegou a despencar escada abaixo. Finalmente, um grupo conseguiu impor alguma ordem e entregaram cada um dos baldes a grupos de dez ou doze pessoas. A essas, outras que haviam ficado sem grupo, e sem balde, se juntavam. Em cada grupo, todos tentavam enfiar a mão dentro dos baldes ao mesmo tempo. Houve mais confusão, mais gritaria, mas no fim, todos pareciam ter conseguido pegar pelo menos um punhado daquela papa branca que havia no balde. A menina chupava seus dedos. Seus olhos pareciam mais alertas, mais brilhantes. A mulher, no entanto, sabia que a garota ainda tinha fome, pois a sua própria não havia sido saciada.

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