22.7.08

Cheiro de Gente

Se deu conta disso no início de uma aula. Seus alunos iam tomando as cadeiras do auditório. Ele estava sentado à sua mesa, aguardando os dez minutos de tolerância estipulados pela reitoria. Era contra aquilo. Sempre o fora. Se a aula estava marcada para começar às 7, que começasse às 7, e não às 7 e 10. Não se importava com alunos que chegavam atrasados, desde que não atrapalhassem, não perturbassem. Mas o fato de a tolerância ser uma regra, fazia com que todos acabassem por chegar depois da tolerância. Não valia a pena começar no horário. O quórum era muito baixo. Ou seja, ele perdia 10 minutos todos os dias. Já havia tentado fazer palavras cruzadas nesse tempo, ou jogar sudoku, mas se irritava por ter que parar para começar a aula. Não gostava de parar no meio de nada, não gostava de interrupções, de forma alguma.
Mas, enfim, do que se deu conta o professor? Dos cheiros.
Aquele não era um dia quente. Era uma manhã de outono. Os alunos entravam agasalhados. Iam entrando no auditório, tirando parte dos acessórios que usavam para se proteger do frio de fora: gorro, cachecol, casacos mais pesados... não era um dia quente mesmo. Estava frio! O professor os observava. Os alunos se sentando, misturados aos casacos que iam sendo depositados sobre as carteiras vazias, pareciam partículas em suspensão que iam se sedimentando, à medida que a agitação do frasco, no caso o auditório, ia diminuindo. Até mesmo o zum-zum-zum de vozes que se perguntavam sobre a noite anterior, reclamavam do time que havia perdido um jogo importante, comentavam que o período de provas se aproximava, até isso ia diminuindo graduamente.
O professor olhou para trás, por cima do ombro, abaixando um pouco a cabeça para enxergar, por cima dos óculos que só usava para ler, os ponteiros do relógio que ficavam sobre a longa lousa: o braço pequeno passava um pouco do número 7, enquanto o longo ia se encontrando ao número 2. Tá na hora, pensou. Virou-se para a frente novamente. Ainda sem se levantar da mesa. Olhou em volta e percebeu que o zum-zum-zum já tinha se dissipado. Os alunos o olhavam, o encaravam, o esperavam. Começou a se levantar e estancou. Que cheiro era aquele? Um cheiro meio adocicado, mas não de uma forma agradável. Deu umas fungadinhas discretas, não queria demonstrar o que sentia, e se levantou. Seu nariz sempre fora sensível.
Lembrava-se com clareza da primeira vez que havia andando de trem em Paris. O trem estava lotado e em determinado momento teve que sair do vagão, muito antes de chegar a seu destino. Se conteve como pode. Seu francês não era então o fluente de hoje. E mesmo que o fosse, seria impossível conter o calor que lhe subia as entranhas e falar ao mesmo tempo, em que língua fosse. E assim não conseguiu chegar ao banheiro público da estação, tendo que se livrar daquele líquido ocre e acre em uma das lixeiras que havia ali.
Sentia agora aquele mesmo cheiro, que empesteava o ambiente, parecia adentrar suas narinas e seus poros, tornava o ar mais denso. Cheiro de gente. O verdadeiro cheiro de gente. Desodorante não tem cheiro. Perfume não tem cheiro de gente. Nem o têm os sabonetes e xampus. Todas essas substâncias químicas foram inventadas justamente para disfarçar os odores exalados pelo corpo humano. Não é necessário o calor. No fundo, por baixo de perfume, cremes e loções, mesmo em climas frios, está lá o cheiro da pele, e das secreções humanas. Não existe animal mais mal-cheiroso do que o homem.
Não disse nada. Saiu da sala e se dirigiu para o banheiro mais próximo.

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