26.9.08

Crônica: a arte da digressão

Uma crônica bem escrita é uma delícia. O escritor te tira do seu mundo por um instante (muitas vezes pra te jogar de volta nele). A crônica te faz parar um pouquinho. É muito parecido com dar uma paradinha pra tomar um copo de café quentinho ou fumar um cigarro (quem fuma sabe do que eu tô falando).
E o mais interessante da crônica bem escrita é que ela não precisa ser sobre nenhum assunto específico. Muitas vezes, é difícil precisar sobre o que o texto se trata. Parece uma ode à escrita por si só.
Tem uma do Vinícius na qual ele fala da agonia do cronista de ter que escrever na última hora, por que, segundo ele, normalmente o cronista deixa pra começar a trabalhar no texto sempre na última hora. E ele diz que o bom cronista se enfrenta nessa situação. É o desafio maior, a pressão, o eustresse. Se eu tenho uma semana pra entregar um texto, e começar a trabalhar nele imediatamente, vai ser fácil demais (pra um bom cronista como era o Vinícius, né?). Mas se, ao invés disso, eu deixar pra escrever no último dia, a coisa muda de figura. Eu não posso mais pensar: "Ah, mais tarde eu começo." Por que mais tarde eu tenho que entregar a crônica pronta. E ele fala da agonia do editor que está esperando a crônica pra encerrar o jornal. O cronista nessa hora, invariavelmente, entra em contato com a sensação eminente de perder o emprego. E essa sensação, no caso do Vinícius, parecia ser a fonte de inspiração maior. E aí ele diz que começava a olhar pros lados pra achar alguma coisa sobre a qual escrever. Ele cita a cadeira. Poderia ser qualquer outro objeto, no entanto. Qualquer coisa que encontrasse o olhar do cronista.
E lendo essa crônica dele, pensando também em outras lidas de outros cronistas mais disciplinados, eu percebi um traço muito recorrente nesse tipo de texto: a tal da digressão.
O cara começa a escrever sobre uma coisa, muitas vezes só pra começar e no meio do caminho já te levou pra outro lugar. E acho que isso é o que torna a crônica uma delícia de leitura. É o mesmo que acontece quando se senta com um grupo de amigos pra bater papo.
Não existe linearidade alguma em conversa entre amigos. A não ser quando existe uma questão muito séria a ser tratada, é claro. Mas em geral é assim. A galera senta à mesa do bar, pede uma cerveja e o cardápio e começa a falar do trabalho. Aí tem a menina que sempre levanta a pelota sobre o que a fulana tava usando. O cara então, já solta uma piada machistinha pra alfinetar. E alguém de repente acha um tira-gosto no cardápio que parece interessante. E aquilo lembra um quarto elemento presente da comida que a vó dele fazia. E, de repente, o grupo está dividindo reminescências da infância. No fim da noite, paga-se a conta e cada um vai pra sua casa. Estão todos felizes, leves, prontos pro que der e vier no dia seguinte.
A digressão em textos mais formais, como ensaios ou dissertações, é mal vista. Mas é que ali há um foco, há uma tese a ser comprovada. E a digressão te tira da rota.
Então, na cabeça do bicho homem, há a necessidade das duas situações. É preciso ter textos sérios, como conversas sérias, em que decisões são tomadas baseadas em estudo, em teorias. É preciso também ter o texto leve, a conversa de bar, sem rumo, sem pretensões.
Outra forma de ver a digressão sendo usada com maestria é na tal da stand-up comedy. O cara sobe no palco, agarra o microfone e começa a conversar com a platéia. Não existe uma linearidade naquela conversa. O charme está justamente nessa falta de linearidade. Um assunto puxa outro sem critério. Pode ser por conexão de sentido, por similaridade sonora, não importa.
A crônica, a stand-up comedy e a conversa de bar funcionam como o pensamento. Aquele fluxo incessante de idéias, muitas vezes desconexas, que vão te levando do Nepal ao Chuí.
E por ser uma espécie de imitação de um ato inerente ao ser humano, acho que todo mundo, vez ou outra, deveria tentar escrever uma crônica. No mínimo, você vai melhorar sua habilidade lingüística. E quem sabe você não descobre que tem o dom de digredir do Vinícius.

14.9.08

Navio Tumbeiro
Capítulo X - Final

A mulher não sentia mais nada. Estava sentada recostada à parede com a menina no colo. Todos ali pareciam dormir e, embora seus olhos não estivessem fechados, ela também não parecia estar acordada. Seus olhos fixos mal piscavam vez ou outra. Sua respiração era lenta e superficial. Seus braços contornavam o corpo da menina, mas ela não fazia força alguma. Seu corpo todo, cada músculo, tudo completamente abandonado à força da gravidade e ao balanço constante daquele lugar.
Ela se moveu.
Muito lentamente colocou a menina no chão. Olhou-a mais uma vez e beijou-lhe a testa. Levantou-se novamente e caminhou até o príncipe. Ele também dormia. Seu corpo contorcido, suas mãos amarradas acima da cabeça, as feridas, os cortes. Ele não era mais um ser humano. Ninguém ali era.
A mulher olhou para a mancha negra no pé da escada. Lembrou-se do gigante tombado, seu sangue lavando o assoalho imundo. Lembrou-se também do velho carregado escada acima como um saco de lixo. Lembrou-se da morta e da irmã da morta. Lembrou-se do seu marido.
Olhou para a escada e dirigiu-se até ali. Muito lentamente subiu degrau a degrau. Chegou no alto da escada. Respirou fundo. Olhou para baixo e viu o escuro.
Começou então a esmurrar a porta à sua frente. E gritava, e amaldiçoava aqueles homens. Seus companheiros de viagem e de amarguras iam acordando com o barulho. Todos foram se aproximando da escada. Tentavam entender o que estava acontecendo, mas ninguém tentava conter a mulher.
De repente, a porta se abriu. O homem com o instrumento que cuspia fumaça estava ali. Ele e a mulher se encararam por um longo período. Um olhava dentro da alma do outro. Nenhum deles enxergava nada. A mulher deu mais um grito e se jogou em cima daquele homem, mordendo-o no rosto. Ouviu-se um estrondo e todos se uniram a ela, subindo as escadas, gritando, urrando. Não eram homens. Eram bestas.

5.9.08

Arriscado

Fico aqui imaginando
Por que você não me vê
Se me vê, por que não segura o olhar?

Não sei se posso te dar
Aquilo com o que sonha
Pois não me diz

Talvez, no entanto, sonhe
Dentro de seus tantos sonhos
Também com o que quero te dar
O perigo de viver um grande amor

1.9.08

Acomodada

Em versos te redimo
Daqueles que te criticam
Dizendo que você não ama
Que vive comigo
Por outras razões
Preguiça, vaidade, interesse

Razões... não há razão!
Há no seu peito muito mais coração
Do que na voz estridente que te aponta o dedo
Não enxergam a beleza do seu amor
Latente na capacidade de receber o meu
Navio Tumbeiro
Capítulo IX

Uma demonstração do que eles seriam capazes de fazer. O príncipe ainda estava de pé, mas não sobre as próprias pernas. As amarras que prendiam seus pulsos acima de sua cabeça impediam que seu corpo desabasse de vez. No lugar das lágrimas de antes, agora a única coisa que escorria pelo seu rosto magro e pela barba mal aparada era a cor vermelha de seu sangue. Seu olho esquerdo estava muito inchado.
Os homens subiram a escada e a porta os trancou do lado de fora. Algumas pessoas começavam a se movimentar. Uns iam para perto do enorme corpo sobre a poça de sangue. Outros iam até o príncipe e o olhavam espantados, levando a mão à boca e murmurando baixinho uns para os outros.
A menina chorava baixinho num canto. A mulher foi até junto dela e a abraçou. As duas choravam juntas. Um choro de menina e um choro de mulher.
A porta do alto da escada se abriu novamente. Colocaram um balde daquela papa branca no topo e o chutaram escada abaixo. A papa foi se espalhando pelos degraus sujos. Colocaram também um único balde com água lá no alto, mas não o chutaram. Em seguida, fecharam a porta mais uma vez.
A menina ainda chorava, mas a mulher a colocou no chão. Beijou seus olhos e pediu que não os abrisse. Levantou-se enxugando as próprias lágrimas e foi até o príncipe. Se deteve a alguns metros, como os outros faziam. Não conseguia dizer se ele estava apenas desacordado ou se também havia... Respirou fundo e chegou mais perto. O chamou. Ele não se moveu. Ela se aproximou um pouco mais e percebeu o peito do homem se mover lentamente. Mais uma lágrima escapulia do olho esquerdo da mulher.
Ela então subiu a escada correndo e trouxe o balde d'água para baixo. Rasgou um pedaço dos farrapos que suas vestes tinham se tornado e o umedeceu. Levou-o até a testa do príncipe e começou a limpá-lo. Passava com muito cuidado aquele pedacinho de pano úmido que rapidamente se tingia de vermelho e a obrigava a molhá-lo novamente no balde. Torcia-o e continuava a limpar o rosto do príncipe. Os olhos do homem se abriram lentamente. Ele olhava para ela. Ela interrompeu seu trabalho. O olhou de volta.
Ele abriu a boca muito lentamente e ela pode perceber que um de seus dentes da frente não estava mais lá. Ele disse com muita dificuldade que sabia quem ela era e que conhecera seu marido. Então acrescentou, entre esforços, que ele havia sido morto.
A mulher caiu a seus pés chorando.