14.9.08

Navio Tumbeiro
Capítulo X - Final

A mulher não sentia mais nada. Estava sentada recostada à parede com a menina no colo. Todos ali pareciam dormir e, embora seus olhos não estivessem fechados, ela também não parecia estar acordada. Seus olhos fixos mal piscavam vez ou outra. Sua respiração era lenta e superficial. Seus braços contornavam o corpo da menina, mas ela não fazia força alguma. Seu corpo todo, cada músculo, tudo completamente abandonado à força da gravidade e ao balanço constante daquele lugar.
Ela se moveu.
Muito lentamente colocou a menina no chão. Olhou-a mais uma vez e beijou-lhe a testa. Levantou-se novamente e caminhou até o príncipe. Ele também dormia. Seu corpo contorcido, suas mãos amarradas acima da cabeça, as feridas, os cortes. Ele não era mais um ser humano. Ninguém ali era.
A mulher olhou para a mancha negra no pé da escada. Lembrou-se do gigante tombado, seu sangue lavando o assoalho imundo. Lembrou-se também do velho carregado escada acima como um saco de lixo. Lembrou-se da morta e da irmã da morta. Lembrou-se do seu marido.
Olhou para a escada e dirigiu-se até ali. Muito lentamente subiu degrau a degrau. Chegou no alto da escada. Respirou fundo. Olhou para baixo e viu o escuro.
Começou então a esmurrar a porta à sua frente. E gritava, e amaldiçoava aqueles homens. Seus companheiros de viagem e de amarguras iam acordando com o barulho. Todos foram se aproximando da escada. Tentavam entender o que estava acontecendo, mas ninguém tentava conter a mulher.
De repente, a porta se abriu. O homem com o instrumento que cuspia fumaça estava ali. Ele e a mulher se encararam por um longo período. Um olhava dentro da alma do outro. Nenhum deles enxergava nada. A mulher deu mais um grito e se jogou em cima daquele homem, mordendo-o no rosto. Ouviu-se um estrondo e todos se uniram a ela, subindo as escadas, gritando, urrando. Não eram homens. Eram bestas.

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