29.1.08

Carnaval

Era sexta-feira. Enquanto metade da população paulistana arrumava as malas para descer para a praia, Cristina limpava os pés no capacho antes de procurar a chave na bolsa. Chovia muito. Era difícil equilibrar o guarda-chuva na mesma mão em que segurava a bolsa enquanto a vasculhava. Enfim, entrou em sua casa. Sua mãe dormia no sofá. A televisão estava ligada. Com muito cuidado acordou Dona Júlia.
- Mãe, vamos dormir na cama.
E foi conduzindo sua mãe até a cama. Depois de certificar-se que a janela do quarto de Dona Júlia estava fechada, voltou para a sala. Havia largado o guarda-chuva perto da porta e uma pequena poça se formara. Levou o guarda-chuva até a cozinha e pegou um pano de chão no armário para limpar a água na entrada da sala.
Depois de colocar o pano de chão dentro do tanque, voltou para a sala. Na televisão, dois comentaristas discutiam quem seria a escola campeã daquele ano: Mangueira ou Beija-Flor. Desligou-a e foi para seu quarto. Tirou os sapatos e o casaco. Como pode estar frio nessa época do ano? pensava. Sentou-se em frente ao computador e foi checar sua caixa de email. Vazia. Não conseguiu conter uma lágrima furtiva que escapou de seu olho esquerdo. Secou-a com a manga da blusa e deu uma olhadela em direção à porta do quarto, só para checar se sua mãe não estava mesmo por perto, e caiu em prantos. Sentia-se só aos 34 anos. Tinha poucas amigas com as quais quase nunca se encontrava. Precisava ficar com sua mãe.
Desligou o computador, colocou sua camisola e foi dormir.
Cristina havia se apaixonado uma vez. Noivara. Mas levara um duro golpe que a deixara seca, amarga, sem amor. E, mais do que isso, deixara-a com medo.
Ela conhecera Adalberto em seu primeiro emprego, logo que se formara em administração de empresas. Adalberto gostava de tudo que ela fazia. Queria ouvir tudo o que ela tinha a dizer. Não se cansava de fazer amor com ela. Depois de 6 anos de namoro, finalmente pedira sua mão em casamento e houve o primeiro e único conflito. Ele não aceitara muito bem o fato de que a sogra teria que viver com eles. Dizia que não se sentiria à vontade. Cristina insistia. Sua mãe precisava dela, afinal, Cristina era sua única filha.
Depois dessa primeira discussão, as coisas começaram a esfriar. Adalberto já não telefonava mais todos os dias e, praticamente, só se encontravam aos domingos, quando Cristina ia até a casa dele para assistir um filme ou transar. Mas nem isso acontecia mais com tanta freqüência. Não conseguiam mais encontrar um filme que agradasse aos dois. Transar era frustrante. Adalberto jogava seu corpo sobre o de Cristina e se retirava em menos de 2 minutos. Cristina queria conversar e ele reclamava. Teria que levantar cedo para trabalhar. Antes de adormecer, pedia que ela trancasse a porta ao sair.
Um dia Cristina recebeu um email de Adalberto. Ele dizia que havia se apaixonado por outra e que ela não precisava devolver a aliança. E Cristina desistira. Se o grande amor de sua vida não aceitava sua mãe, ninguém mais o faria.
E todas as noites eram iguais desde então. Cristina chegava em casa e levava sua mãe para o quarto. Abria sua caixa de email para perceber que estava sempre vazia e ia dormir. Às vezes chorava, principalmente no dia dos namorados.
No sábado Cristina acordou com o sol batendo em seu rosto. Estranhou. Não sentia o cheiro do café preparado por sua mãe todas as manhãs. Levantou-se devagar, se espreguiçando.
- Mãe? - chamou de seu quarto.
Não houve resposta. Se levantou e foi até o quarto de Dona Júlia. Encontrou um bilhete sobre o travesseiro.

Querida Cristina,
Desculpe por não ter tido coragem de te falar antes. Conheci um homem. Ele era casado, mas sua mulher faleceu essa semana e ele veio aqui hoje de manhã. Queria me levar para conhecer seu sítio. Não tenho mais idade para dizer não a ninguém. Volto na quarta-feira de cinzas.
Bom carnaval,
Mamãe

Ao terminar de ler o bilhete, Cristina não conseguia fechar sua boca. Se sentiu traída. Mas essa sensação foi rapidamente subsituída por outra: a de liberdade. Correu para o quarto e ligou o computador. Comprou a primeira passagem que encontrou para o Rio de Janeiro. Pagou uma fortuna e sabia que teria que pagar mais uma fábula de hospedagem, mas pensou, esse ano eu vejo a Mangueira entrar, nem que eu venda meu carro. Fez às malas e foi curtir o carnaval.

3 comments:

Paulets said...

Esse bloqueio super valeu a pena...AMEI

Felipe said...

animal...
o final matou a pau.

Elfa said...

Outro texto de mesmo título?
Que medo!