14.8.08

Navio Tumbeiro
Capítulo VII

A mulher acordou. Estava escuro. Só se ouvia um ruído suave, compassado, de água em movimento, e um ranger leve e lento de madeira com madeira. Na medida em que seus olhos iam se adaptando à pouca luz, ela ia percebendo a silhueta do príncipe ainda em pé por trás da escada. Seu companheiro também estava lá.
A mulher não conseguiu voltar a dormir. A cada ruído vindo da porta ou das frestas no teto, seus olhos se abriam novamente. Ela sentia sua respiração acelerar com o ritmo das pulsações de seu coração. Olhava para a menina e pensava onde poderia escondê-la caso algo acontecesse. Não via nada. Começou a pedir aos santos que conhecia que protegessem aquela criança pelo menos. Lembrou-se de seu marido. E lembrou-se da mulher morta e da irmã da morta.
E era para ela que a mulher olhava agora. Uma mulher viva, mas sem vida. Seus olhos continuavam olhando o nada. Mas seus braços não mais abraçavam as pernas. Seu corpo não se balançava. Ela estava sentada com as costas apoiadas na parede. As pálpebras pareciam querer se fechar, mas não se fechavam. Apenas abaixavam-se levemente, num piscar de olhos cansado e lento, vez ou outra. Seu peito quase não se movia. Era difícil dizer se ela respirava. Durante aqueles poucos instantes, a mulher sentia exatamente o que a irmã da morta sentia -- ou talvez não sentia --, o que a fazia simplesmente não reagir, um estado de dormência da alma. Naquele breve momento, as duas mulheres eram uma só, dentro da mesma sensação de impotência, de indiferença, torpor.
De repente, a menina disse alguma coisa. A mulher se assustou. Virou-se para a pequena. Esqueceu-se da irmã da morta. Mas a menina ainda dormia. Havia murmurado algo nos seus sonhos. Sonhos certamente melhores do que a realidade a aguardando na aurora. Melhor seria não acordar mais. Nunca mais.
Voltou-se na direção da irmã da morta mais uma vez. Seus olhos não estavam mais abertos. Talvez sonhasse também.

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