4.12.10

Fim do Dia



Acordou cedo e se olhou no espelho. Era cedo. Mas não tanto quanto ele planejara. Ainda de pijama, foi até a cozinha e colocou água para ferver. Era muito mais água do que ele precisaria. Sempre fazia isso. Assim, teria mais tempo para trocar de roupa. De volta ao quarto, as portas do guarda-roupa já o esperavam abertas. Olhava de um lado para o outro, o monte de roupa da última passada ainda sob o velho baú no pé da cama. Era mais sensato não pegar nenhuma daquelas peças, ou elas seriam usadas mais vezes do que as que ainda estavam no guarda-roupa. Pegou qualquer coisa dentre as poucas peças que acabava sempre repetindo e retornou a cozinha para terminar de coar o café. Tomou uma xícara, acompanhada de um pão com manteiga, em pé, apoiado à pia. Estou atrasado, pensou, escovo os dentes quando chegar no escritório.

"Ele chegou não faz 5 minutos e já foi ao banheiro. Não entendo por que sempre faz isso. E sempre leva a mochila com ele. Já pensei que talvez ele escove os dentes. Mas não faz sentido. Ele entra e não come nada. Eu já vi também que ele não come por aqui por perto. Provavelmente come em casa ou não come nada. Então, não faz sentido chegar e ir para o banheiro. Todos os dias! E por que leva a mochila? O que carrega nela além do computador? Como eu queria saber!
Ah, lá vem ele de volta. A mesma cara sem expressão. Diz bom dia, mas é como se não dissesse nada."

"Ele passa a manhã em sua sala. Às vezes sai de lá e vai ao banheiro (mas sem a mochila) ou toma um café. Às vezes conversa com alguém. Já reparei que conversa muito mais com homens do que com mulheres. É isso mesmo! Acho que ele praticamente só cumprimenta as mulheres. Conversar mesmo, só com homens. Teve uma época que eu pensava que ele era gay. Mas o fato de conversar só com homens é pouco perto das secadas que eu já vi ele dando nas meninas do escritório. Parece que tem hora que ele esquece que está em público e se perde. Tem um olhar de tarado estranho. Dá a impressão que ele tá com raiva. Uma mistura de raiva e tesão. Uma coisa meio bicho, meio homem das cavernas. Confesso que isso até me excita um pouquinho. Mas é só no mundo das idéias. O conjunto da obra me espanta, me afugenta! Percebo também que ele, nas conversas com os outros caras, nunca parece relaxado, nunca parece feliz. Olha para os outros caras enquanto eles falam com a mesma cara sem expressão com que me dá bom dia. De vez em quando solta um 'an-ram'. Muito raramente diz um frase. E são frases pontuais, como que pra colocar fim na conversa. Escutei poucas vezes, mas pelo gestual, parece sempre ocorrer a mesma coisa. Ele tá saindo pra almoçar. Hoje ele vai comer hamburger. Sei disso por que é sexta-feira.
Já o segui algumas vezes. Sou muito curiosa. Admito. Às sextas ele vai sempre numa lanchonete aqui perto e pede um X-tudo. (Eu gosto de tomar um suco de laranja que vendem na padaria em frente.) Deve ser a maneira que ele encontrou de celebrar a sexta-feira. Ele também sempre pede uma cerveja. Senta lá no fundo, de costas para a porta de entrada, olhando para a parede. Come devagar e saboreia a cerveja. Também fuma um cigarro, enquanto caminha de volta para o escritório. Mas só às sextas. Ele nem tem cheiro de cigarro. As meninas do escritório até hoje não acreditam em mim. Pensam que eu confundi ele com outra pessoa. Onde já se viu alguém fumar só em um dia da semana?"

Conseguia até sentir certo prazer no cigarro. Mas sabia dos danos que poderia causar. E ele precisava viver muitos anos para recompensar a família por tê-lo sustentado durante os primeiros 25 anos de sua vida. Então, fumava só um cigarro por semana. Nunca ouvira falar, nunca lera nada a respeito de alguém que tivesse morrido de câncer fumando um único cigarro por semana. Na verdade, ele nunca ouvira falar de ninguém além de si próprio que fumasse um único cigarro por semana.
Ele percebeu que a recepcionista estava por perto. A menina tomava um suco do outro lado da rua. Ele podia reconhecê-la facilmente de onde estava, embaixo daquela árvore, apoiado em seu tronco. Ela não era linda, mas também estava longe de ser feia. E tinha um certo charme no andar que atraía sua atenção. Queria esperar a moça terminar para seguí-la até o escritório. Mas a puta não terminava a merda do suco! Queria seguí-la para acompanhar a distância o rebolado que ela tinha quando caminhava. Quem sabe um dia ele a chamasse para sair. Seria bom se tivesse mais amigos. Uma festa seria uma oportunidade ideal para um convite desses. Mas seus únicos amigos eram seu irmão, que morava no Canadá e com quem se comunicava exclusivamente via email, e um colega de faculdade que mudara para o Rio. No mais, era só. Então, não havia uma oportunidade interessante de convite. Assim era melhor, por que ele sabia como tudo acabava.
Fim de dia, fim de namoro, fim de fim de semana. Aquela coisa que aperta o peito. Foi bom enquanto durou, ou não, mas tudo voltava à estaca zero no final. A segunda sempre vinha, o dia seguinte, a ressaca...
Desistiu de esperar. Apagou o cigarro na sola do pé e voltou para o escritório. Tinha mais o que fazer.

1 comment:

Guilherme Navarro said...

Eu sou muito virginiano com literatura - muito crítico, muito chato, muito perfeccionista. E eu realmente gosto da forma como você escreve com suavidade sobre coisas simples, porém densas. Orgulho-me de você meu amigo!

E já está na lista de blog lá no meu!