30.8.08

Do Lado de Dentro

Ele entrou e a porta se fechou selando-o dentro daquele habitáculo. Olhou em volta. As paredes pareciam ser revestidas em fórmica bege. Nos cantos, 4 réguas de alumínio subiam do chão, revestido por 6 grandes placas de borracha negra, até o teto, onde se encontravam a uma armação quadrada, também de alumínio, que encerrava uma placa de acrílico branco responsável pela iluminação, ao deixar-se atravessar pela luz, branca e fria, emanada de quatro lâmpadas fluorescentes posicionadas acima.
Na mesma parede onde havia a abertura para a porta, um painel de alumínio cheio de botões e números. No canto oposto ao do painel, no alto, uma pequena redoma de vidro negro abria caminho pela placa de acrílico do teto para observar quem estivesse ali.
Apertou um dos botões. Sentiu um momentâneo aumento de peso e percebeu que começava a subir. No painel de alumínio, um pequeno visor negro com letras vermelhas começava a contar, 1, 2, 3. Sentiu uma sacudidela e percebeu que havia parado.
Olhou para o visor. Olhou para a pequena redoma de vidro no teto. Decidiu assobiar. E quase no mesmo segundo parou. Resolveu escutar. Seus olhos estavam abertos. Não ouvia nada. Não ouvia vozes ou qualquer outro barulho. Voltou a assobiar. Não assobiava música alguma. Apenas assobiava. Se impacientou. Parou de assobiar novamente e deu um passo para perto da porta. Não ouviu nada. Apertou novamente o mesmo botão que havia apertado antes. Nada aconteceu. Então apertou um grande botão vermelho que se encontrava na parte inferior do painel. Enquanto deteve o dedo sobre o botão vermelho, ouviu soar uma campainha estridente. Retornou à posição inicial e cruzou os braços na altura da pélvis segurando o pulso direito com a mão esquerda. Voltou a assobiar. Agora assobiava uma bossa nova. Nada aconteceu. Chegou perto da porta mais uma vez. Pressionou mais uma vez o botão vermelho. E outra e mais outra. Deu uns tapinhas na porta enquanto perguntava em voz alta se alguém podia ouví-lo. Nenhuma resposta. Começou então a esmurrar a porta. Na verdade, se revezava entre socos, chutes, e novas pressões sobre o botão vermelho. Se cansou. Sentia sua camisa grudando no corpo e sua respiração estava ofegante. Parou. Pôs as mãos na cintura e depois levou o pulso direito à testa para deter gotas de suor que começavam a se reunir sobre as sobrancelhas. Gritou mais uma vez. Agora gritava a palavra socorro sem nenhum embaraço. Resolveu sentar no chão. Lembrou-se do celular no bolso. Tateou com a mão esquerda e pescou o pequeno aparelho. Para sua decepção o pequeno visor do aparelho mostrava que ele estava fora de cobertura. Arremessou o celular contra a porta e gritou um palavrão. O aparelhinho se desfez em pedaços. Enquanto observava os restos do celular espalhados sobre o assoalho de borracha, a porta se abriu.
Uma senhora com rolinhos no cabelo e óculos na ponta do nariz o censurava com o olhar. Ele se levantou, ainda pensou em catar os caquinhos, mas de nada adiantaria e ele já se sentia embaraçado demais. A mulher entrou no elevador, medindo o rapaz de cima a baixo. Ele pediu desculpas pelo barulho e tentou explicar que o elevador provavelmente precisava de reparos. A mulher soltou ar pelas ventas e entrou no pequeno meio de transporte. Ele ficou lá, observando, vendo a porta se fechar. Percebeu pelo mostrador acima da porta os números irem diminuindo 3, 2, 1, T. Resolveu subir os 5 andares restantes pela escada.

29.8.08

Paixão do Metrô

Menina, não se assuste
Se eu, em desvario,

Que nunca te vi
Nem sei o seu nome
Não sei de onde vem
Nem me disponho a te seguir

Mas doido e trêmulo
Me atiro a seus pés
Te dedico um poema
E sorrindo te proponho:

"Casa hoje comigo?"

26.8.08

A Boca Cheia de Conselhos

Da próxima vez que eu tiver um conselho
Vou avaliá-lo com muito cuidado
Vou medir, pesar, pensar
Se o conselho for bom
Vou te dar

Mas antes de dizer pra você
Vou pra frente do espelho
Olhar bem no fundo nos meus olhos
E dizer o conselho primeiro pra mim
Vou ouvir

É provável que eu precise mais dele do que você

23.8.08

An Outline

One day I'll lie on the ground
I'll hand you a piece of crayon
I'll let you draw a line
All around my body
I'll let you choose the color
I'll just lie there
And wait till you're done
Yeah, I'll let you define me
Because I've been trying so fucking hard
But don't seem to be getting anywhere
So I'll let you do it for me
Because I trust you
Always have
Always will

But I know you won't do it
You're too busy now
Furthermore,
You'd say that ain't right
You'd even help me
Pick a beautiful color
Green, or perhaps orange
But then you'd smile
(And when you do it, it's unique)
And you'd say:
"Who are you? What are you?
Define yourself!"
I don't know right now
I hope I'll know then
When you hand me the crayon
In fact, I hope I'm able to do it myself
Because I know it's too late now
You've already dropped that piece of crayon
You did it a long time ago

20.8.08

Navio Tumbeiro
Capítulo VIII

Gritos e um estrondo. A menina chorava em seu colo enquanto a mulher a apertava com ambas as mãos e seus olhos percorriam todo o ambiente, captando tudo, tentando compreender o que acontecia. Todos estavam encolhidos no mesmo canto. Alguns se escondiam embaixo da escada. O príncipe segurava o rapaz dos baldes à frente de seu próprio corpo com a ajuda de seu sempre fiel companheiro. O príncipe tinha uma faca em sua mão direita. Apertava-a contra a garganta do rapaz dos baldes enquanto olhava em direção à escada. Do alto da escada, o mesmo homem branco de antes, o que carregava aquele instrumento pesado, fitava o príncipe. Ele segurava o mesmo objeto de antes, mas agora segurava-o com as duas mãos. A mão direita próxima ao corpo. A mão esquerda à frente, acompanhando o comprimento do objeto. A ponta do instrumento soprava fumaça e estava apontada na direção do príncipe. O homem branco dizia alguma coisa para o príncipe. Outros homens brancos estavam no alto da escada, mas nenhum deles ia além do limite das costas do primeiro. Permaneciam às suas costas, observando por cima de seu ombro o que acontecia. Apenas aguardavam. E ele permanecia lá, no alto da escada, imóvel, segurando aquele objeto que cuspia fumaça. O rapaz dos baldes agora tentava conversar com o príncipe. Gaguejava. Implorava por sua vida. Dizia que era como ele, e apenas servia os brancos para não apanhar. Dizia que de nada adiantaria matá-lo.
A mulher colocou a menina no chão e se levantou. Ninguém disse nada. O príncipe, seu companheiro, o rapaz dos baldes, o homem branco, os homens às suas costas, a menina, os outros homens, as outras mulheres, ninguém se movia. A mulher começou a caminhar lentamente em direção ao príncipe. Ele disse a ela que não se aproximasse mais. O homem branco gritou alguma coisa do alto da escada. Mas todos mantinham as mesmas posições. Ela se aproximou mais um pouco e parou. Andava nas pontas dos pés. Não sabia por que mas não queria fazer nenhum ruído. Prendeu a respiração e virou-se para o homem branco. Ele agora apontava o instrumento para ela. Ela observava a fumaça, que agora ia se dissipando no ar. De repente, a mulher sentiu um empurrão. Era jogada ao chão pelo companheiro do príncipe. Ouviu-se outro estrondo. O companheiro do príncipe estancou na base da escada. Passou a mão no peito e depois levou-a à frente do rosto para vê-la pintada com seu sangue. Seu rosto não aparentava dor. Todos os músculos de seu rosto pareciam ter se relaxado ao mesmo tempo. Até sua boca estava entreaberta. Levantou a cabeça lentamente em direção ao homem branco. O instrumento agora produzia mais fumaça e apontava para aquele homem que parecia ter adormecido em pé de olhos abertos na base da escada. Ele se virou para o príncipe com o mesmo rosto sem expressão e a boca entreaberta. O que contrastava com a face do príncipe. Suas sobrancelhas estavam apertadas. Seus dentes se atritavam e ele apertava com mais força o rapaz dos baldes. E assim, sem emitir nenhum som, sem dizer nada, o homem tombou sobre o próprio peito. Uma poça de sangue começava a se formar embaixo daquele corpo enorme e estático. O príncipe, de súbito, largou o rapaz dos baldes e a faca e ajoelhou-se chorando ao lado daquele corpanzil. O homem branco e seus companheiros desceram correndo as escadas. Agarraram o príncipe e o amarraram a uma pilastra. Ele não lutava, não se debatia. Amarraram-no com as mãos presas acima da cabeça e começaram a açoitá-lo. Uns davam pontapés entre as pernas. Outros, socos no rosto. E iam se revezando. O príncipe apenas chorava. Mas não eram os golpes que despertavam suas lágrimas.

14.8.08

Navio Tumbeiro
Capítulo VII

A mulher acordou. Estava escuro. Só se ouvia um ruído suave, compassado, de água em movimento, e um ranger leve e lento de madeira com madeira. Na medida em que seus olhos iam se adaptando à pouca luz, ela ia percebendo a silhueta do príncipe ainda em pé por trás da escada. Seu companheiro também estava lá.
A mulher não conseguiu voltar a dormir. A cada ruído vindo da porta ou das frestas no teto, seus olhos se abriam novamente. Ela sentia sua respiração acelerar com o ritmo das pulsações de seu coração. Olhava para a menina e pensava onde poderia escondê-la caso algo acontecesse. Não via nada. Começou a pedir aos santos que conhecia que protegessem aquela criança pelo menos. Lembrou-se de seu marido. E lembrou-se da mulher morta e da irmã da morta.
E era para ela que a mulher olhava agora. Uma mulher viva, mas sem vida. Seus olhos continuavam olhando o nada. Mas seus braços não mais abraçavam as pernas. Seu corpo não se balançava. Ela estava sentada com as costas apoiadas na parede. As pálpebras pareciam querer se fechar, mas não se fechavam. Apenas abaixavam-se levemente, num piscar de olhos cansado e lento, vez ou outra. Seu peito quase não se movia. Era difícil dizer se ela respirava. Durante aqueles poucos instantes, a mulher sentia exatamente o que a irmã da morta sentia -- ou talvez não sentia --, o que a fazia simplesmente não reagir, um estado de dormência da alma. Naquele breve momento, as duas mulheres eram uma só, dentro da mesma sensação de impotência, de indiferença, torpor.
De repente, a menina disse alguma coisa. A mulher se assustou. Virou-se para a pequena. Esqueceu-se da irmã da morta. Mas a menina ainda dormia. Havia murmurado algo nos seus sonhos. Sonhos certamente melhores do que a realidade a aguardando na aurora. Melhor seria não acordar mais. Nunca mais.
Voltou-se na direção da irmã da morta mais uma vez. Seus olhos não estavam mais abertos. Talvez sonhasse também.

30.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo VI

A mulher e a menina acordaram com o barulho de vozes gritando, protestando. Mais baldes haviam chegado. Ouve novamente a mesma divisão de antes, os viajantes eram divididos em grupos menores e cada um desses grupos ficava com um balde. Outra vez empurrões, mais protestos e enfim toda a comida havia se acabado. Todos haviam conseguido pelo menos um punhado da papa branca.
Era espantoso perceber como se transformavam os olhos e as feições da menina depois de se alimentar. A mulher não sabia se os efeitos eram só uma percepção mais alegre de quem tem a fome aplacada, ainda que não completamente, ou se, de fato, envolviam também o desabrochar de um sorriso no rosto de uma criança alimentada, ainda que de maneira muito parca. Decidiu que as duas coisas deveriam acontecer.
Olhou em volta e percebeu que a irmã da morta estava sentada em um canto. Observou que suas mãos não estavam úmidas como a dos demais. Ela não deveria ter comido. Estava sentada no chão abraçando as próprias pernas com a cabeça apoiada entre os joelhos. Balançava todo o corpo para frente e para trás nervosamente. A mulher decidira ficar mais próxima daquela outra. Tentava conversar com ela. Fazia perguntas. A menina também tentava animá-la passando a mão por seus cabelos e murmurando a mesma canção que a mulher havia cantado para ela. Mas aquela mulher não tinha forças para mais nada. Ela havia sido a única daqueles viajantes que não havia se alimentado. Seu olhar ficava parado em um canto. Como se olhasse para algo de muito significado quando na verdade não olhava para nada, não via nada do que estava ali em sua frente.
O príncipe se aproximou, sempre acompanhado daquele outro homem. A mulher agora observava como era grande e forte aquele homem. Suas pernas pareciam troncos de árvores. O príncipe parecia um menino perto de seu companheiro.
Abaixando-se lentamente ao lado da mulher, o príncipe varria com o olhar todo o ambiente ao redor. Sua testa franzida, suas sobrancelhas quase se encontravam, seus olhos apertados como se quisessem e pudessem ver além do que realmente enxergavam. Sua respiração era lenta e curta, inaudível.
Virou-se para a mulher e disse a ela que chegara o limite: ele tinha que reagir em nome de seu povo. A mulher se assustou. Dizia que não sabiam o que estava atrás daquela porta. Tentou aconselhá-lo a não fazer nada, a se resignar. O príncipe respondeu, com calma sobrenatural, que aquele era o dever dele. Já estava decidido. Ela então perguntou sobre o rapaz dos baldes. Ele parecia ser da mesma terra que aqueles viajantes. Mas o príncipe não respondeu. Apenas se levantou e foi caminhando para trás da escada seguido por seu robusto companheiro.
A mulher então puxou a menina para si. Abraçou-a forte e disse-lhe que ficasse sempre junto a ela. Em seguida, se dirigiu à mulher em luto pela irmã. Chamava-a e perguntava seu nome. Mas ela não respondia. Nem sequer retornava o olhor suplicamente da mulher, que enfim, desistiu.
Puxando a menina pela mão, a mulher abandonou a outra em luto mudo e se afastou o máximo que pode das escadas. A porta não se abriu mais naquele dia. O príncipe não saiu de sua posição. E a mulher não tirou seus olhos cansados dele até que se fecharam.

25.7.08

On The Way Home

When the dream came
I held my breath with my eyes closed
I went insane
Like a smoke ring day when the wind blows
Now I won't be back till later on
If I do come back at all
But you know me, and I miss you now
In a strange game
I saw myself as you knew me
When the change came
And you had a chance to see through me
Though the other side is just the same
You can tell my dream is real
Because I love you, can you see me now
Though we rush ahead to save our time
We are only what we feel
And I love you, can you feel it now

Acho que a letra é do Neil Young (se alguém tiver informação mais acertada, please let me know), mas gosto da versão cantada pelo Renato Russo no Acústico.

FAQC

23.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo V

A mulher se aproximou do grupo que velava a morta. Reconheceu alguns dos que ali estavam. Não sabia seus nomes, mas lembrava-se de já tê-los visto. Além dos que reconhecia, os outros ali também pareciam ser de sua terra. Observava isso pela maneira como velavam a morta. Obviamente, alguns dos rituais não poderiam ser obedecidos uma vez que aquelas pessoas não tinham acesso a nenhum instrumento, e muito menos liberdade para se locomoverem. Tudo o que tinham era o que cada um tinha: a companhia dos outros. Desde a criança órfã até o príncipe, ali a única riqueza ou privilégio era a voz e o toque do outro. E de repente parecia aquilo tão caro, tão importante. A mulher abraçava a irmã da morta. A menina também. Depois vieram o princípie e aquele homem que sempre o acompanhava. E por fim todos aqueles que dividiam aquela cela vieram demonstrar apoio à irmã da morta: alguns abraçavam, outros apenas seguravam sua mão por um tempo, outros meneavam a cabeça. E iam ficando por ali. Todos próximos.
Antes de anoitecer novamente, o rapaz dos baldes retornou. Não vinha sozinho. Tinha um ajudante. Ambos usavam muitas vestes que lhe cobriam as mãos e os braços, a boca e o nariz. O rapaz se dirigiu à irmã da morta. Disse-lhe que precisava levar o corpo. Ela quis protestar, mas o princípe a conteve dizendo alguma coisa a seu ouvido e abraçando-a. Nem o princípe nem o seu acompanhante tiravam os olhos do rapaz. Com a ajuda do outro homem de corpo coberto, o rapaz levou embora o cadáver. A irmã da morta chorava baixinho enquanto a luz ia diminuindo avisando aos viajantes que mais um dia se acabava.

22.7.08

Cheiro de Gente

Se deu conta disso no início de uma aula. Seus alunos iam tomando as cadeiras do auditório. Ele estava sentado à sua mesa, aguardando os dez minutos de tolerância estipulados pela reitoria. Era contra aquilo. Sempre o fora. Se a aula estava marcada para começar às 7, que começasse às 7, e não às 7 e 10. Não se importava com alunos que chegavam atrasados, desde que não atrapalhassem, não perturbassem. Mas o fato de a tolerância ser uma regra, fazia com que todos acabassem por chegar depois da tolerância. Não valia a pena começar no horário. O quórum era muito baixo. Ou seja, ele perdia 10 minutos todos os dias. Já havia tentado fazer palavras cruzadas nesse tempo, ou jogar sudoku, mas se irritava por ter que parar para começar a aula. Não gostava de parar no meio de nada, não gostava de interrupções, de forma alguma.
Mas, enfim, do que se deu conta o professor? Dos cheiros.
Aquele não era um dia quente. Era uma manhã de outono. Os alunos entravam agasalhados. Iam entrando no auditório, tirando parte dos acessórios que usavam para se proteger do frio de fora: gorro, cachecol, casacos mais pesados... não era um dia quente mesmo. Estava frio! O professor os observava. Os alunos se sentando, misturados aos casacos que iam sendo depositados sobre as carteiras vazias, pareciam partículas em suspensão que iam se sedimentando, à medida que a agitação do frasco, no caso o auditório, ia diminuindo. Até mesmo o zum-zum-zum de vozes que se perguntavam sobre a noite anterior, reclamavam do time que havia perdido um jogo importante, comentavam que o período de provas se aproximava, até isso ia diminuindo graduamente.
O professor olhou para trás, por cima do ombro, abaixando um pouco a cabeça para enxergar, por cima dos óculos que só usava para ler, os ponteiros do relógio que ficavam sobre a longa lousa: o braço pequeno passava um pouco do número 7, enquanto o longo ia se encontrando ao número 2. Tá na hora, pensou. Virou-se para a frente novamente. Ainda sem se levantar da mesa. Olhou em volta e percebeu que o zum-zum-zum já tinha se dissipado. Os alunos o olhavam, o encaravam, o esperavam. Começou a se levantar e estancou. Que cheiro era aquele? Um cheiro meio adocicado, mas não de uma forma agradável. Deu umas fungadinhas discretas, não queria demonstrar o que sentia, e se levantou. Seu nariz sempre fora sensível.
Lembrava-se com clareza da primeira vez que havia andando de trem em Paris. O trem estava lotado e em determinado momento teve que sair do vagão, muito antes de chegar a seu destino. Se conteve como pode. Seu francês não era então o fluente de hoje. E mesmo que o fosse, seria impossível conter o calor que lhe subia as entranhas e falar ao mesmo tempo, em que língua fosse. E assim não conseguiu chegar ao banheiro público da estação, tendo que se livrar daquele líquido ocre e acre em uma das lixeiras que havia ali.
Sentia agora aquele mesmo cheiro, que empesteava o ambiente, parecia adentrar suas narinas e seus poros, tornava o ar mais denso. Cheiro de gente. O verdadeiro cheiro de gente. Desodorante não tem cheiro. Perfume não tem cheiro de gente. Nem o têm os sabonetes e xampus. Todas essas substâncias químicas foram inventadas justamente para disfarçar os odores exalados pelo corpo humano. Não é necessário o calor. No fundo, por baixo de perfume, cremes e loções, mesmo em climas frios, está lá o cheiro da pele, e das secreções humanas. Não existe animal mais mal-cheiroso do que o homem.
Não disse nada. Saiu da sala e se dirigiu para o banheiro mais próximo.

20.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo IV

Naquele dia não trouxeram mais comida. A mulher e a menina já se aninhavam para dormir, quando a porta no alto da escada se abriu mais uma vez e novamente desceu por ela o rapaz dos baldes. Dessa vez, porém, não trazia nenhum. Dois homens se aproximaram do rapaz. Um deles colocou a mão no peito do rapaz impedindo que ele passasse. O outro fez uma pergunta. A mulher percebeu que falavam sua língua, mas não conseguiu distinguir o que o homem havia dito. Observou-o melhor e o reconheceu: era seu príncipe! Nunca havia visto-o daquela forma. Estava muito magro, praticamente nu, sua barba estava comprida.
O rapaz falava baixo e pausadamente. Também não era possível entender. Ele gesticulava pouco. Evitava olhar para os olhos de seu interlocutor. Procura fitar os próprios pés. Parou de falar e olhou para o príncipe como quem espera uma resposta. O príncipe acenou com a cabeça. O rapaz então pegou a mão do príncipe e beijou-a com respeito. O príncipe olhou para o outro homem que o acompanhava e este deixou o rapaz passar.
A mulher demorou um pouco a perceber, mas o rapaz vinha em sua direção. Comprimentou-a, respeitando a maneira com a qual a mulher estava acostumada a ser cumprimentada por outros homens em sua terra -- o que a deu certo conforto --, e perguntou se ela era a mãe da menina. A mulher disse que sim sem hesitar. Tinha medo de que as separassem.
O rapaz então se apresentou. Seu nome não parecia com os nomes com os quais a mulher estava acostumada. Ele explicou que havia nascido no Novo Mundo. Por isso seu nome era diferente. Olhava para a mulher com um meio sorriso e olhos bem abertos. A mulher não disse nada. Ele então continuou dizendo que no Novo Mundo haviam pessoas que falavam diversas línguas diferentes pois cada uma vinha de um lugar. Parou novamente e olhou mais uma vez para a mulher com aquele meio sorriso. A mulher perguntou então o que aconteceria quando chegassem ao tal Novo Mundo. O jovem disse que ela trabalharia. E que a menina também trabalharia, assim que tivesse forças e tamanho suficientes. Mais uma pausa com meio sorriso. Ele prosseguiu dizendo que o melhor a fazer era pedir perdão ao Pai. A mulher não compreendera aquilo. Ele então explicou que o Pai era o nosso Criador. Acrescentou que o filho Dele estava sentado à sua direita, de onde podia ver tudo o que ocorria. A mulher estava cada vez mais confusa. O rapaz sorriu novamente. E disse a ela que pedisse forças ao Espírito Santo e então terminou aconselhando-a de que se lembrasse: havia só um Deus. A mulher não entendia mais nada.
Ouviu-se um grito. Uma mulher chorava sobre o corpo de outra. Gritava. Dizia que haviam matado sua irmã. Haviam envenenado-a. A mulher morta tinha manchas na pele. Parecia também ter perdido um pouco de sua cor.
O rapaz se aproximou. A mulher com quem conversava o seguiu, mas decidiu não chegar muito perto. Todos ali se apertavam para ver o que acontecia e ela temia mais um tumulto. O rapaz então se ajoelhou próximo ao corpo da mulher. Fez um gesto estranho com a mão direita, parecia desenhar uma cruz no ar. Disse então algumas palavras a irmã da mulher morta. Depois disso levantou os olhos para o céu e juntou as mãos. Começou a dizer algumas palavras em uma língua estranha. As pessoas o interromperam. Ele disse que orava pela alma daquela mulher. Mas ninguém compreendia o que ele dizia em sua prece e por isso não permitiram que ele continuasse. Ele fez novamente aquele gesto com a mão direita e se retirou. Antes de sair, disse a mulher com quem conversara que traria mais comida no dia seguinte. Ainda lançou um olhar na direção daquelas pessoas que o expulsaram. Balançou a cabeça e desapareceu fechando a porta atrás de si mais uma vez.

5.7.08

Navio Tumbeiro
Capítulo III


A mulher e a menina finalmente dormiram abraçadas uma a outra. Apesar de o ambiente ser escuro, era possível perceber se era dia ou noite através das frestas no teto, que se deixavam penetrar por raios de sol mais intensos em algumas horas do dia. E foi justamente um desses raios que veio acordar a mulher. Ela se sentia enauseada. Não entendia como poderia estar se sentindo assim. Não comia nada há quase dois dias. Talvez fosse por conta daquele balanço interminável das paredes. Pensou na menina que dormia em seu colo. Quando ela teria comido? Não sabia se resistiriam a mais um dia. Na chuva do dia anterior havia bebido um pouco de água. Não tivera coragem de beber das poças que se formavam no chão, como vira vários outros fazer, mas bebera um pouco da água que pingava do teto. O gosto não era bom. Não parecia limpa. Mas a sede que sentira fizera-a agradecer por aquele caldo. Ela estranhara o fato de a água estar um pouco salgada.
Enquanto averiguava mais uma vez o ambiente através da pouca luz, a porta no alto da escada se abriu mais uma vez. Agora ela não via um homem de pele clara. Via uma pessoa que muito se assemelhava àquelas com quem ela própria convivera. E embora não o conhecesse, o mero fato de ele se parecer com ela, fazia-a se sentir melhor. No entanto, ela percebeu que o rapaz usava roupas mais parecidas com as dos homens de pele clara. Ele descia as escadas e trazia em cada uma das mãos um balde. Pareciam estar cheios, pois ele tinha muita dificuldade. Ao chegar no pé da escada, o rapaz posicionou os baldes no primeiro degrau. Enxugou a testa com o braço e enfiou a mão dentro de um dos baldes trazendo para fora uma concha. Então o rapaz começou a dizer algumas palavras em voz alta o bastante para que todos ouvissem. Ela, a princípio, não entendera o que ele dizia, mas, de repente, reconheceu a palavra "água" no meio daquelas outras palavras estranhas.
Saltou em direção ao rapaz. E, como ela, outras pessoas iam fazendo. O rapaz, percebendo que um tumulto se formaria, agarrou os baldes e tentou subir correndo as escadas. Foi detido no entanto por um estrondo ensurdecedor. Todos pararam onde estavam. Ninguém mais se movia. Todos olhavam para cima.
O homem de pele clara que viera no dia anterior buscar o corpo do velho estava no alto da escada. Segurava aquele mesmo objeto longo. De uma de suas pontas saía fumaça. Ele disse algo ao rapaz dos baldes. O rapaz acenou com a cabeça e se virou lentamente para a parte mais baixa da escada. Colocou os baldes no degrau em que estava e disse que todos viessem com calma buscar a água ou eles se machucariam. Pediu que as mulheres e as crianças viessem primeiro. A mulher então foi se aproximando lentamente. Estava muito assustada. A menina não chorava, mas tremia muito. Ao chegar sua vez de receber a água ela perguntou ao rapaz onde estavam. Ele disse que iam para um lugar muito distante. Se referia a esse lugar como o Mundo Novo. Explicou para a mulher que estavam em um barco. Mas ela nunca havia visto um barco daquele tamanho. Perguntou ao rapaz se trariam comida. E ele disse que sim e pediu a ela que bebesse a água e retornasse ao lugar onde estava para que os outros pudessem também beber. A mulher colocou um pouco de água na boca, o quanto lhe foi permitido. Deu também água para a menina e retornou para junto da pilastra onde encontrara a garotinha chorando. Rapidamente a água dos baldes acabou. Alguns homens ficaram sem beber e gritavam. Porém, nenhum deles tinha coragem de subir as escadas. O rapaz se foi, levando os baldes vazios, fechando a porta atrás de si.
Os homens que não haviam bebido água resmugavam, esbravejavam. Alguns começaram a trocar empurrões. A mulher se recolheu a um canto com a menina. Tinha medo do que poderia acontecer ali. Muitas pessoas juntas, em pouco espaço, alguns pareciam doentes, todos tinham fome, todos tinham sede. Tentava imaginar o que cada um de seus companheiros de viagem teria passado antes de ser trazido para esse barco. Olhava em volta. Percebeu que a maioria das pessoas era jovem. Parecia mesmo que o único velho ali havia sido o homem que morrera ao pé da escada. Havia algumas poucas crianças. Olhava agora para a menina no seu colo novamente. A menina repentinamente deu um pulo. Apontou para o outro lado do aposento. Havia um rato enorme. A mulher já havia visto outros ratos ali. Mas os ratos não a assustavam. As pessoas, sim.
Não se passou muito tempo e a porta se abriu novamente. O mesmo rapaz trazia mais baldes, com a ajuda de um outro homem. Colocaram os baldes no alto da escada e o rapaz disse para baixo que havia mais água e também comida. Os homens se desembestaram escada acima. Houveram mais empurrões, mais insultos, e um deles chegou a despencar escada abaixo. Finalmente, um grupo conseguiu impor alguma ordem e entregaram cada um dos baldes a grupos de dez ou doze pessoas. A essas, outras que haviam ficado sem grupo, e sem balde, se juntavam. Em cada grupo, todos tentavam enfiar a mão dentro dos baldes ao mesmo tempo. Houve mais confusão, mais gritaria, mas no fim, todos pareciam ter conseguido pegar pelo menos um punhado daquela papa branca que havia no balde. A menina chupava seus dedos. Seus olhos pareciam mais alertas, mais brilhantes. A mulher, no entanto, sabia que a garota ainda tinha fome, pois a sua própria não havia sido saciada.

27.6.08

Navio Tumbeiro
Capítulo II

Despertou-se com gritos e um corpo que caía sobre ela. Era outra mulher. Chorava e pedia ajuda. O ambiente continuava escuro, mas agora tudo se movia com muita violência. Havia também muito barulho. Parecia chover muito forte do lado de fora. Percebeu que havia água por todos os lados. Gritos vinham do alto da escada atravessando a porta que antes ela havia enxergado. Gritos também ecoavam naquele aposento escuro. As pessoas que ali estavam eram jogadas umas contra as outras. Tentou se apoiar em algo. A outra mulher se levantava agora. Percebeu um corte na cabeça daquela mulher. Sangrava muito. Dois homens tentavam se equilibrar e se aproximavam. Eles falavam sua língua. Ela compreendia o que eles diziam, mas não os reconhecia. Eles tentavam amparar a mulher ferida. Ela finalmente se colocou de pé.
Conseguiu distinguir em meio ao tumulto aquele mesmo choro que havia ouvido antes de adormecer. Enquanto a outra mulher era amparada pelos homens que falavam sua língua, ela foi se movimentando, se apoiando nas pessoas que estavam pelo caminho, algumas em pé, se equilibrando como podiam, outras de joelhos e mesmo outras deitadas, chorando. Tudo sacudia. Ela percebia agora por onde entrava água no aposento. Descia em grande quantidade pela escada, mas também entrava pelas frestas no teto. Por isso o chão estava tão molhado e escorregadio. Continuou andando até encontrar a origem daquele choro de criança. Uma menininha de pouco mais de 5 anos se agarrava a uma pilastra e chorava.
Se aproximou dela e se amparou na mesma pilastra que dava abrigo à menina. Falou-lhe. Sentou-se a seu lado e a abraçou. A menininha a abraçou de volta. Um abraço muito forte. Era como se as duas estivessem se reencontrando após anos de ausência. Lembrou-se de uma música que seu pai cantava. Não se lembrava das palavras, mas a melodia estava ainda muito viva em sua mente e foi o suficiente para manter a menina tranquila até que tudo se acalmou. O aposento já não sacudia tanto. A garotinha não dormia, mas permanecia muito quieta, seus olhos grandes fixos nos olhos daquela estranha que a acalentava. A mulher pensava que a menina deveria ter fome. Ela também tinha muita fome, mas não parecia haver nada ali. Perguntou a menina sobre sua mãe e ficou feliz de saber que a menina entendia o que ela falava, mas a entristeceu o fato de a garotinha não saber onde estavam sua mãe ou seu pai. E lembrou-se também que não sabia onde estava seu marido.

25.6.08

Navio Tumbeiro
Capítulo I

Abriu os olhos e não reconheceu o lugar onde estava. Estava em um ambiente fechado e escuro. O cheiro era detestável. Percebeu através da pouca luz que entrava por frestas no teto que havia mais pessoas ali. Olhava em volta e procurava alguma silhueta conhecida. De repente sentiu o chão se mover. Na verdade, todo aquele aposento, se é que era um aposento, se movia. Se apoiou à parede e a uma pilastra que identificara a sua frente para conseguir se levantar. Sua cabeça, seu ventre, seu sexo, todo seu corpo doía muito. Lentamente as imagens foram se formando na sua mente.
Haviam invadido sua casa, quebraram tudo. As memórias iam surgindo aos poucos e suas forças se esvaíam com cada nova lembrança. Lembrou de seu marido tentando protegê-la. Vários homens o agarraram e o dominaram. Ela tentou se desvencilhar dos outros que a tinham agarrado também. Separaram-na de seu homem. Levaram-no. Dois homens a seguravam dentro de sua casa. Depois de algum tempo, os outros três voltaram. Ela gritava e cuspia. Tentava se soltar, mas agora eles eram ainda mais fortes. Eram cinco homens fortes. Ela era uma mulher. Mas não deixava de lutar. Os homens tinham no hálito um cheiro que ela não conhecia. Se aproximavam dela e conversavam em uma língua que ela não entendia. Pareciam estar tramando contra ela. Olhavam seu corpo e riam-se. De repente, um deles tocou seus seios e percorreu seu ventre com as mãos. Ela já não gritava, nem se debatia. Sua respiração estava acelerada. Fitava-o com ódio. Os outros quatro a seguraram mais firmemente, cada um imobilizando um de seus membros, enquanto o quinto continuava a explorar seu corpo. Ele se desfez de suas vestes e rasgou as da mulher. Era esta a última lembrança que tinha.
Caiu novamente no chão. Em parte por faltarem-lhe as forças, em parte pelo balanço das paredes e do chão. Não conseguia mais conter o pranto que brotava de seu peito e apertava sua garganta.
Ouviu passos. Vinham de cima. Ouviu alguém chorar. Apertou os olhos. Não conseguia perceber quem era. Haviam muitas pessoas ali. Mas aquela voz, era a voz de uma criança.
Uma porta se abriu, no alto de uma escada que ela agora percebia. A luz que entrava por ali, não era muita, mas ajudou a perceber melhor o estado em que se encontravam aquelas pessoas a sua volta. Todos pareciam cansados, algums estavam feridos, pareciam ter levado uma surra. Subitamente achou que fosse uma boa idéia fingir-se de morta. Um homem desceu as escadas. Sua pele era clara, como a daqueles comerciantes que vieram até sua vila certa vez. Também as roupas daquele homem faziam-na lembrar das roupas daqueles comerciantes. Ele carregava um objeto longo nas mãos. Parecia pesado. Por vezes, deixava o abaixado, quase tocando o solo. Por vezes o amparava com as duas mãos. Ele olhava ao redor. Ela se sentia segura em observá-lo, mas não tinha coragem de se dirigir a ele. Ele deu algumas voltas e se deteve diante de um velho deitado bem próximo a escada. Cutucou o velho com o objeto que trazia às mãos. O velho não se moveu. Cutucou-o mais algumas vezes e disse algumas palavras que ela não conseguia entender. Finalmente, acertou um forte chute no estômago daquele velho caído. Ela ouviu um gemido, mas percebeu que não havia partido daquele corpo sem vida. Parecia ter partido de algum ponto por trás da escada. O homem de pele clara balançou a cabeça. Gritou alguma coisa em direção à porta e agarrou o pé direito do velho. Começou a arrastá-lo, mas se deteve ao pé da escada. A mulher o observava. A distância e a pouca luz faziam com que ela se sentisse segura para levantar um pouco a cabeça e observar melhor o que acontecia, mas agora segurava o choro. Tinha medo de ser ouvida.
Outro homem de pele clara desceu as escadas. Trocou algumas palavras com o primeiro e agarrou o pé esquerdo do velho. Ambos começaram a subir a escada, arrastando com eles aquele corpo sem vida -- a cabeça do velho ia pulando de degrau em degrau, fazendo um barulho oco, seu corpo parecia mais um saco de ossos sendo arrastado escada acima. Ao alcançarem o topo da escada, fecharam novamente a porta, trancando novamente a escuridão dentro daquele aposento. A mulher não tinha muitas forças. E já havia visto o bastante. Não tentou se levantar novamente. Começou a chorar baixinho. Tinha muita fome e sede. Seu corpo doía e sentia um cansaço que parecia não caber em seu corpo. Adormeceu.

17.6.08

Frio

Voltava para casa depois do trabalho. Era um desses raros privilegiados que podem voltar para casa a pé morando em São Paulo. Adorava se lembrar disso. Na verdade, adorava falar sobre isso a quem quer que fosse. Se sentia um rei. Enquanto a maioria de seus amigos passava quase 2 horas no trânsito todos os dias, ele ia embora descendo a rua vagarosamente. Ainda passava na padaria para comprar cigarros. E chegava em casa em exatos 17 minutos após ter deixado o trabalho.
Mas no inverno as coisas não eram assim tão agradáveis.
Naquela noite a temperatura caíra bruscamente. Ele ouvira no rádio que chegaria aos 10 graus antes das 7 da noite. Quando deixou o trabalho, já se passavam das 9. Havia trazido um casaco, mas não esperava que fosse esfriar tanto. Antes de deixar o prédio do escritório onde trabalhava, fechou o zíper do casaco e meteu as mãos nos bolsos da calça.
Ao sair do prédio, se despediu do vigia que fazia a ronda noturna. Aquele cara havia se preparado: estava de sobretudo, gorro, e luvas.
Saiu do prédio e sentiu o vento cortar seu rosto. Seu nariz era como uma pedra de gelo. Foi descendo a rua. Demoraria um pouco mais a chegar em casa hoje. Não dava para andar muito rápido com aquele clima. O sangue em seu corpo nem parecia circular mais. A cada passo parecia estar se aproximando mais do pólo norte. Decidiu fazer a parada de sempre para comprar cigarros e aproveitou para pedir um café bem quentinho. Seria uma grande ajuda. Enquanto tomava o café, se entretia com a conversa do dono da padaria com um funcionário. Falavam de futebol. O dono da padaria reclamava da diretoria do seu time. Culpava a má administração.
Ao terminar o café, pagou sua conta e foi, novamente, enfrentar aquele sopro gelado.
A rua da padaria era paralela à rua onde morava e antes de chegar à altura em que ficava seu prédio, dobrava uma esquina à esquerda em uma ruazinha de pouquíssimo movimento.
Ao entrar naquela rua reconheceu imediatamente o carrinho da catadora de papel que passara a viver ali. Lembrou-se da cena que havia presenciado na semana anterior, quando a dona de uma das casas daquela rua havia chamado a polícia para que expulssassem aquela "mendiga" dali. Não era justo, a mulher dizia aos policiais, afinal ela não pagava impostos com nós.
Foi se aproximando do carrinho e estranhou não ver fumaça. A catadora de papel sempre fazia uma fogueirinha em noites frias como aquela. Ao passar pelo carrinho, percebeu que ela estava deitada ali, mas a fogueira parecia ter se apagado. Por um momento, parou. Olhou em volta. Não havia mais ninguém na rua. Tentou aguçar sua adição. A mulher estava tão parada, tão quieta, que poderia ser confundida com uma estátua. Parecia mesmo fazer parte do cenário, não como um personagem, mas como um poste, ou um hidrante, ou um saco de lixo. Ela não tinha muito com o que se cobrir. E ele estranhara o fato de ela não estar tremendo. E por que será que ela não acendia a maldita fogueira?
Assobiou. Não houve reação. A situação o deixava cada vez mais tenso. Não era de ter medo. Sempre caminhava por aquelas ruas tarde da noite. Mas ficar ali parado também já era demais. E o frio o lembrava a todo instante de que sua cama quentinha o aguardava.
Assobiou novamente. Nada.
Chamou pela mulher:
-- Ei, moça!
Nenhum movimento, nenhum som, nada.
Chamou mais alto e o resultado era o mesmo. Se impacientou e foi até ela. Tocou seu corpo, sacudiu a pobre mulher e percebeu que o corpo dela já esfriara. Assustou-se. Tirou a mão daquele corpo inerte rapidamente e se levantou. Sentia um calafrio na espinha. Estava morta. Morrera de frio. Não sabia o que fazer. Sentiu uma lágrima correr-lhe a face. Aos poucos dava soluços contidos. Não entendia como algo assim poderia acontecer. Ficou ali sem reação por alguns minutos. Talvez velasse a morta. Sim, era um velório de uma só pessoa, sem padre, sem capela, sem caixão, sem flores, sem pêsames aos familiares. Não havia familiares. Havia jornal, restos de comida em uma panela velha e suja, uma garrafa d'água pela metade.
Achou que deveria fazer alguma coisa, mas o quê? Pensou em ligar para os bombeiros. Já não adiantava mais nada. Não havia nenhuma vida a ser salva. Pensou então na polícia. Melhor não. Passaria a noite na delegacia dando explicações sobre algo que simplesmente não lhe dizia respeito. Ele não era o culpado pela morte daquela mulher. Enxugou as lágrimas com a manga do casaco e decidiu ser racional. Não havia nada que pudesse ser feito por aquela pobre coitada. Além do mais, se ele tivesse tomado outro caminho, não teria visto aquilo. Por que havia cismado de parar? Por que não continuara? A essa altura, já estaria dormindo.
Decidiu ir embora. Nada podia ser feito e o corpo seria descoberto pela manhã por outra pessoa.

10.6.08

Abulia

Está acordado, mas seus solhos ainda estão fechados, simplesmente por que não tem vontade de abrí-los. De repente, um barulho vindo da sala o força a fazê-lo. Percebe ser o vento e nem mesmo se mexe, mas não volta a fechar os olhos. Fica lá, olhando para o guarda-roupa. Olhando para as portas fechadas. Deveria se levantar, mas nem pensa nisso. Já passa da hora do almoço. Não há nada na geladeira. Talvez um resto de pizza da semana passada. Está frio e o vento que vem da sala gela sua pele. Continua imóvel.

6.6.08

Auto-controle

Olhou para o celular e viu que era ela. Como ela havia prometido no email, às 11:30 ela o telefonava. Depois de 15 anos sem vê-la, ele não sabia como reagiria ao reencontrá-la. Não devo fazer isso, repetia para si mesmo enquanto do celular ecoava uma versão de Garota de Ipanema.
- Alô.
- Oi.
- Tudo bem?
- Tudo. Eu disse que ia ligar.
- É.
- E você atendeu.
- É.
- Então é por que você também quer.
No email que enviara, ela o convidava para um almoço. Dizia que o marido estava fora da cidade a negócios e não tinha hora para voltar. Sérgio já havia feito sua inscrição para um Congresso que aconteceria no Rio naquele fim de semana.
Ele enfim respondeu:
- Não tenho certeza.
- Bom, não quero te pressionar. Vou te esperar aqui. Se você não chegar em uma hora, eu vou entender que você desistiu.
Desligaram. Sérgio estava atormentado. Sabia que o que fazia era errado, imoral. Amava sua mulher. Amava seus filhos. Amava sua vida perfeita de homem bem casado e bem sucedido. Mas sentia muita falta do gosto da aventura. Gosto muito bem representado por Sílvia. E ela o esperava a menos de 15 minutos dali.
Finalmente decidiu-se. Vou lá rapidinho, pensava, dou um alô pra ela, como alguma coisa e vou me embora. Não havia nada demais em rever uma velha amiga. É verdade que Sílvia era bem mais do que uma velha amiga. Mas naquele instante Sérgio decidira tratá-la assim. Ligou para seu escritório e falou com sua secretária:
- Solange, como está minha agenda para hoje?
- Não tem nada não, Seu Sérgio. O contador ficou de vir aqui, mas desmarcou.
- Tá certo. Pode fechar e sair mais cedo então.
Sua mente estava fervilhando. Tinha esperança de que houvesse algum compromisso inadiável que o obrigasse a voltar depressa para o escritório. Bom, em todo o caso, ele poderia sempre inventar alguma desculpa.
Quando estacionou o carro, sentiu a transpiração escorrer pelas costas. Deu uma olhada no retrovisor. Os cabelos grisalhos o lembravam de suas responsabilidades. Saiu do carro afoito.
Assim que entrou no restaurante, avistou Sílvia. Perfeita como sempre. Antes de caminhar até a mesa onde ela estava sentada, respirou fundo e disse baixinho para si mesmo:
- Dane-se!

16.5.08

The lyrics from yet another great song by Mr. Ben Harper

Lifeline

life is much too short
to sit and wonder
who's gonna make the next move
and will slowly pull you under
when you've always got
something to prove

i don't want to wait a lifetime
yours or mine
can't you see me reaching
for the lifeline

you say that i misheard you
but i think you misspoke
i hear you laugh so loudly
while i patiently await the joke

i don't want to wait a lifetime
not yours
not mine
can't you see me reaching
for the lifeline

it's a crime with only victims
we're all laid out in a row
and it's hardest to listen
to what we already should know

i could hold out for a lifetime
yours or mine
yours and mine
can't you see me reaching for
your lifeline

22.4.08

Quero molhar meu pé no Atlântico
Dançar ao som desse doido cântico
Nada com nexo, sou mesmo romântico

Quero andar por aí batendo perna
Se você não vive a vida, a vida leva
Te traga, te suga, e no fim te enterra

Quero pensar menos pra sentir mais
Sem medo, sem tensão, sem pé atrás
Esse mundo louco é a gente mesmo que faz

Quero me levantar de madrugada
Sair, correr, sem pensar em nada
Não vou topar nem com alma penada

Quero lutar pelo meu sonho
Escolhas que fiz, assim proponho
Na vida nada é assim tão medonho
Not Anymore

Another cigarette and I'll go
I'll pack my things and hit the road
I've got my guitar and the pictures of my friends

I'll remember you forever
Whether I'm stuck in hell or heaven
Your laughter and your eyes once so mine, so close

A shattered glass left untouched
Words, thoughts and tears, hate and lust
There's nothing more to say, nothing more to pray for

But I want you to know
Those days were so beautiful
You and I
We were meant to fly
But not together
Not anymore

27.3.08

Feliz Dia Novo

A vida passa mesmo assim
A gente passa pela vida
Se trombando, se batendo, se esbarrando
Se encontrando e se perdendo
Conhece gente nova e gente boa
Gente nova, gente à toa
Reencontra velhas caras
Recorta velhas aparas
E tudo passa
E tudo muda
Ou quase tudo
Joga fora o velho
Deixa o novo entrar
Todo dia é Reveillon

24.3.08

It ain’t gonna rain tomorrow

I see you looking out the window
The blues is on your face now
Watching the gray skies
Plumb clouds blocking your way

I tried to talk to you
You seem distant, just not there
Focused on something dark
Not even notice I’m around
It’s about time you get past that

Just get through it and get it out of your chest
After the rain there’s a rainbow
Cool winds to ease up your sorrow
Just remember, girl
It ain’t gonna rain tomorrow
It ain’t gonna be as dark
The sun is gonna shine again
I can promise you that

Rain drops rolling down the window
Tear drops rolling down your cheeks
But we’ll always have tomorrow
And it’s waiting for you just past midnight

Your mind is as clouded as the sky
There’s no more faith in your heart
The laughter we shared has died away
Yet I say, tomorrow is gonna be another day
Não tenho tido muito tempo para escrever. Escolhas que a gente faz na vida.
Então vou pedir ajuda ao meu grande amigo Greg para preencher esse blog com um belíssimo soneto. Vai daí, Greg!

A Instabilidade das Cousas do Mundo (Gregório de Matos)

Nasce o sol, e não dura mais que um dia
depois da Luz, se segue a noite escura,
em tristes sombras morre a formosura,
em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o sol, por que nascia?
Se é tão formosa a luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no sol, e na luz falta a firmeza,
na formosura não se dê constância,
e na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
e tem qualquer dos bens por natureza
a firmeza somente na inconstância.

Focker out!

29.2.08

Awakening

I had a dream

She was there
Walking right past me
I couldn't see her

The river went on
Never leaving its course
Until that day

Life was turmoil
Everything was falling apart

That was called for
I needed to get to know myself

I opened my eyes
The light hurt me
For a while
I finally could see

And I saw the planet
And the trees
And the birds
And I felt the wind
Caressing my skin

There were people around me
Talking, walking, living
And I finally realized:
"I can..."

That's when I finally saw her
Really saw her
People talked about her
All the time
But I saw her

And I was awake

28.2.08

Versos Escatologicamente Fáceis

Me saem os versos fáceis
Pulam para fora de mim
Como se meus dedos
Não tivessem força para contê-los

Digo que vomito versos
Mas não é uma boa metáfora
Embora, muitas vezes,
Os versos sejam como o vômito:
Mal cheiroso, amarelo, asqueroso

Mas o vômito, não
O vômito me sai com dificuldade
Faz doer as entranhas
De modo que não comparo
Nem crio metáforas
Ou uso qualquer outra figura

Mas eis que surge uma figura
Para bater de frente com a estrofe anterior:
O peido

Sim, meus versos são como o peido
Que escapole, se furta, se esvai
Provocando incômodo
O peido só é bem vindo na solidão
Aí então peida-se à vontade
Como se soltam os versos

Mas não são tão importunos
Os versos

Então decido de vez
Não uso figuras
Apenas digo
Versos fáceis
Fáceis de escrever
Fáceis de ler
Fáceis de lembrar
Fáceis de gostar e de detestar

27.2.08

Bonanza da Insatisfação

Estava sentado no sofá. Avaliava sua vida. Pensava na casa, na esposa, nos filhos. Olhava para a janela e pensou, sou um infeliz. Tinha tudo e não tinha nada.
De repente a janela começou a se abrir. Sentiu que seu corpo era puxado, como que por um vento, em direção à ela. De entreaberta a janela passou a se arreganhar. Agora sentia realmente que seu corpo era sugado para fora através da janela. Olhava em volta e percebia que todos os móveis e a TV continuavam lá, parados, enquanto ele já procurava algo em que se agarrar. A força da sucção aumentou. Percebeu nesse momento que sucção não era a melhor palavra para descrever o que ocorria. Estava sendo expulso de sua casa por uma força desconhecida, talvez magia negra.
Caiu do sofá. Seu corpo batendo pesadamente contra o chão e escorregando, escorrendo em direção à janela como se a sala estivesse tombando tal qual um navio em alto mar. Se agarrou ao sofá, mas a força estranha o puxava ainda mais forte agora. Sentiu seu peso diminuir e percebeu que a gravidade já não mais era suficiente para mantê-lo ali. Não conseguiu mais se segurar e, num estouro, foi cuspido para fora da sala, fora da casa, fora da sua própria vida.
Abriu os olhos. As luzes do quarto estavam apagadas. Sua mulher ressonava ao seu lado enquanto sentia a camisa do pijama grudada à pele pelo suor.
Melhor voltar a dormir, pensou, amanhã é segunda-feira.

24.2.08

Sou um elástico velho de várias pontas. Me estiquei em todas as direções. Tanto estiquei que perdi a elasticidade. Fiquei bambo. Minhas pontas soltas, sem força pra se recolherem de volta.
Sou uma ameba que lançou seus pseudópodes em tantas direções e com tanta força que não consegue mais fagocitar nada.
Uma caravela com muitos mastros, mas cada um aponta prum lado no meio de uma tempestade. Caravela despedaçada.
Um girassol em uma galáxia cheia de sóis. Cada pétala quer puxar a corola em uma direção.
Um rio correndo ao mesmo tempo para o Índico e para o Pacífico.

20.2.08

Forte

Olho pro teto. O sono chega devagar. Estou inconsciente. Sei disso pois vejo seu rosto sorrindo. Minhas mãos deslizam pelo seu corpo, subindo da cintura, acariciando seus seios e, finalmente, chegam até o pescoço. Você continua sorrindo. Minhas mãos envolvem seu pescoço fino.
Começo a apertar. Cada vez mais forte. Você se debate, mas meu peso te subjuga. Percebo que seus lábios começam a ganhar uma coloração púrpura. Sua pele perde o rosado. Está pálida. De repente, não se move mais.
Acordo. Vou pro trabalho. Aquele sonho me perturba. Mesmo morta, ainda me domina.

14.2.08

Maria estava preocupada com seu amigo, Antônio. Ele não parecia muito bem. Andava calado, amuado. Resolveu ligar pra ele.
- E aí, como é que cê tá?
Um suspiro do outro lado. E ele disse:
- O que dizer nessa noite tranqüila? - mais um suspiro. - Talvez que ela esteja tranqüila até demais pro meu gosto. Faz falta ter aquela pessoa do seu lado. Dividir o frio e o calor. Aí, dá uma melancolia gostosa. Dá uma vontade de Me perder naqueles pensamentos. Até percebermos que são só pensamentos. Depois a gente volta e vê que a realidade não tá nada mal, se melhorar estraga. Pelo menos até amanhã, ou depois, ou depois, ou depois...

13.2.08

2U's

Abri os olhos
He was there
Não via seu rosto
He'd turned his back on me

Gritei por ele:
"Quem é você?!
Me mostre seu rosto!!"
Nem um movimento
Only his voice:
"Who I am is irrelevant,
For you know me too well.
Yet, if I showed you my face
You'd probably die in pain."

Me levantei
And attacked him.
Mas ele sabia o que eu ia fazer
Before I could even think
Antes que eu fizesse qualquer coisa
And he assalted me with his elbows
E coices certeiros, castigando
My nose, my ribs, and my sack

Desisti, me sentei
I was panting and
olhando em volta
I saw a farmer's tool:
Uma foice!

I jumped at it and
De um golpe só
Cut off his head

Abri os olhos
The mirror or
O que sobrou dele
Shards of glass
No chão, me refletindo
My hands, my face, my life

10.2.08

Cada Um Com Seus Problemas

Sentou-se na mesa do café e acendeu um cigarro. Olhou em volta e viu um casal de homens trocando juras de amor. Pensou, se eu fosse gay, minha vida seria tão mais fácil. Nesse momento seu celular tocou.
- Alô.
Do outro lado da linha a voz de Fabíola estava trêmula.
- Jaime, onde cê tá?
- Tô tomando um chopinho em um café. O que aconteceu? Cê tá chorando?
- Preciso muito de você agora. Me dá o endereço que vou praí.
Jaime passou o endereço do café e, antes de deixar Fabíola desligar, ainda perguntou:
- Tem certeza que cê tá bem pra dirigir?
- Tô. - disse ela com voz de criança que perdeu um brinquedo.
Assim que Jaime terminou o primeiro chope, percebeu que Fabíola estacionava o carro na rua do café. Ela desceu do carro estabanada, tresloucada, parecia meio perdida. Deixou cair a bolsa no chão. Se abaixou para pega-lá e antes de se levantar novamente, aproveitou para pegar um cigarro. Se levantou cambaleante. Os óculos escuros escondiam os olhos vermelhos de pranto. Acendeu o cigarro enquanto caminhava até a mesa onde Jaime estava sentado.
Jaime a observava e admirava o fato de que, mesmo estando em pedaços, como ela aparentava estar pelo telefone, ela conseguia ser linda. Ele sempre achara que a beleza, interior e exterior, de Fabíola seria o suficiente para encher um estádio de futebol. Quem não pagaria um ingresso para estar em sua presença? E ele, um privilegiado, tinha aquilo todos os dias, sem precisar pagar nada.
Jaime se levantou para abraçar Fabíola. Ela chorava baixinho.
- A Lívia terminou comigo. - ela disse baixinho em seu ouvido.
Ele tentou acalmá-la. A apoiou para que ela se sentasse à mesa. Sentou também.
- O que aconteceu? - Jaime perguntou.
- Não sei. Ela me pediu um tempo. Pelo telefone. Sem explicação.
Agora Fabíola se recompunha. Usava um guardanapo para limpar as lágrimas por baixo dos óculos escuros. E acrescentou olhando para Jaime:
- Ai, Jaime, minha vida seria tão mais fácil se eu não fosse gay.

31.1.08

Subitamente

Faltavam poucas estações. Henrique havia se sentado no penúltimo vagão. Sabia que, quando o metrô parasse, aquele carro seria o mais próximo da escada e aguardava tranqüilamente quando o trem chegou à Estação Trianon-Masp. Foi quando ela entrou.
Henrique sentia o mundo à sua volta perder o sentido, se derreter. A única coisa no mundo, naquele momento, era ela. Ela se sentou em um assento em frente ao de Henrique. E ela também o olhou. A princípio ele nem percebera que ela o encarava de volta e quando o fez, desviou o olhar. Meu Deus! pensava, não consigo parar de olhar.
Não resistiu e voltou a olhar. Ela também ainda o fitava. Sorriram e ela se levantou quando o metrô parou novamente. Henrique entrou em um tipo de desespero interno. Por dentro, estava se debatendo, queria pedir para ela ficar, ou ir com ela, agarrá-la pelo braço! Por fora, mantinha a compostura, apenas a observava, mas se levantou também. E foi aí que percebeu que ela carregava uma pasta. Ela já estava fora do vagão, e ele se aproximou da porta para conseguir ler o que estava escrito na pasta: o nome e o telefone de uma firma de advocacia. Antes que a porta se fechasse, ele gritou para ela, que já se aproximava das escadas:
- Seu nome!
E ela respondeu:
- Daniela!

29.1.08

Carnaval

Era sexta-feira. Enquanto metade da população paulistana arrumava as malas para descer para a praia, Cristina limpava os pés no capacho antes de procurar a chave na bolsa. Chovia muito. Era difícil equilibrar o guarda-chuva na mesma mão em que segurava a bolsa enquanto a vasculhava. Enfim, entrou em sua casa. Sua mãe dormia no sofá. A televisão estava ligada. Com muito cuidado acordou Dona Júlia.
- Mãe, vamos dormir na cama.
E foi conduzindo sua mãe até a cama. Depois de certificar-se que a janela do quarto de Dona Júlia estava fechada, voltou para a sala. Havia largado o guarda-chuva perto da porta e uma pequena poça se formara. Levou o guarda-chuva até a cozinha e pegou um pano de chão no armário para limpar a água na entrada da sala.
Depois de colocar o pano de chão dentro do tanque, voltou para a sala. Na televisão, dois comentaristas discutiam quem seria a escola campeã daquele ano: Mangueira ou Beija-Flor. Desligou-a e foi para seu quarto. Tirou os sapatos e o casaco. Como pode estar frio nessa época do ano? pensava. Sentou-se em frente ao computador e foi checar sua caixa de email. Vazia. Não conseguiu conter uma lágrima furtiva que escapou de seu olho esquerdo. Secou-a com a manga da blusa e deu uma olhadela em direção à porta do quarto, só para checar se sua mãe não estava mesmo por perto, e caiu em prantos. Sentia-se só aos 34 anos. Tinha poucas amigas com as quais quase nunca se encontrava. Precisava ficar com sua mãe.
Desligou o computador, colocou sua camisola e foi dormir.
Cristina havia se apaixonado uma vez. Noivara. Mas levara um duro golpe que a deixara seca, amarga, sem amor. E, mais do que isso, deixara-a com medo.
Ela conhecera Adalberto em seu primeiro emprego, logo que se formara em administração de empresas. Adalberto gostava de tudo que ela fazia. Queria ouvir tudo o que ela tinha a dizer. Não se cansava de fazer amor com ela. Depois de 6 anos de namoro, finalmente pedira sua mão em casamento e houve o primeiro e único conflito. Ele não aceitara muito bem o fato de que a sogra teria que viver com eles. Dizia que não se sentiria à vontade. Cristina insistia. Sua mãe precisava dela, afinal, Cristina era sua única filha.
Depois dessa primeira discussão, as coisas começaram a esfriar. Adalberto já não telefonava mais todos os dias e, praticamente, só se encontravam aos domingos, quando Cristina ia até a casa dele para assistir um filme ou transar. Mas nem isso acontecia mais com tanta freqüência. Não conseguiam mais encontrar um filme que agradasse aos dois. Transar era frustrante. Adalberto jogava seu corpo sobre o de Cristina e se retirava em menos de 2 minutos. Cristina queria conversar e ele reclamava. Teria que levantar cedo para trabalhar. Antes de adormecer, pedia que ela trancasse a porta ao sair.
Um dia Cristina recebeu um email de Adalberto. Ele dizia que havia se apaixonado por outra e que ela não precisava devolver a aliança. E Cristina desistira. Se o grande amor de sua vida não aceitava sua mãe, ninguém mais o faria.
E todas as noites eram iguais desde então. Cristina chegava em casa e levava sua mãe para o quarto. Abria sua caixa de email para perceber que estava sempre vazia e ia dormir. Às vezes chorava, principalmente no dia dos namorados.
No sábado Cristina acordou com o sol batendo em seu rosto. Estranhou. Não sentia o cheiro do café preparado por sua mãe todas as manhãs. Levantou-se devagar, se espreguiçando.
- Mãe? - chamou de seu quarto.
Não houve resposta. Se levantou e foi até o quarto de Dona Júlia. Encontrou um bilhete sobre o travesseiro.

Querida Cristina,
Desculpe por não ter tido coragem de te falar antes. Conheci um homem. Ele era casado, mas sua mulher faleceu essa semana e ele veio aqui hoje de manhã. Queria me levar para conhecer seu sítio. Não tenho mais idade para dizer não a ninguém. Volto na quarta-feira de cinzas.
Bom carnaval,
Mamãe

Ao terminar de ler o bilhete, Cristina não conseguia fechar sua boca. Se sentiu traída. Mas essa sensação foi rapidamente subsituída por outra: a de liberdade. Correu para o quarto e ligou o computador. Comprou a primeira passagem que encontrou para o Rio de Janeiro. Pagou uma fortuna e sabia que teria que pagar mais uma fábula de hospedagem, mas pensou, esse ano eu vejo a Mangueira entrar, nem que eu venda meu carro. Fez às malas e foi curtir o carnaval.

21.1.08

Lorena

Nome de cidade pequena
Rosto de princesa
Sorriso de fada

Seu cabelo dança ao vento
Suas mãos firmes no volante
Os olhos presos na estrada
Não percebem os meus
Te olhando, brilhando

Fala comigo e, aí sim,
Meus olhos se fartam
Da luz, tal qual a lua
Que também me hipnotiza
Me leva, me absorve

Hora de ir embora
As pessoas envolta
Desapareçam!
Eu quero captar só você
E levar comigo pra casa
Só o seu rosto
Só a sua voz
E o toque da sua mão

20.1.08

Um Beijo Roubado

Você insiste: não!
Seus olhos te traem
Sua boca te entrega

Meus braços contornam sua cintura
Puxo seu corpo pra junto do meu
Estamos pele com pele

Seu sorriso me pede
E eu te agarro forte
Te beijo, te tomo o ar

Sua língua na minha
Novos mundos, outras dimensões

17.1.08

Opostos

Júlio era do interior. Mariana morava na capital. Se conheceram no carnaval de Ouro Preto. Júlio estava indo para a casa onde estava hospedado e cruzou com Mariana descendo a ladeira. Estava muito cansado, mas a menina lhe chamou a atenção.
- Se eu fosse você voltava pra casa e ia dormir.
Ela parou e olhou para ele. Júlio havia sido tão espontâneo que ela se perguntou se já não o conhecia. Decidiu que não.
- Por que eu devo voltar pra casa?
- Por que eu estou indo dormir. Você não vai me achar lá embaixo.
Ela achou o cara meio pretensioso, mas pensou, que se dane, é carnaval. E o beijou.
Combinaram de se encontrar mais tarde. E o fizeram. Rodaram pelas ladeiras de mãos dadas, se beijaram encostados nos muros das igrejas, compraram artesanato juntos e no fim do carnaval trocaram emails. Bem, Júlio memorizou o email de Mariana já que nenhum nem o outro tinham canetas.
O carnaval acabou e voltaram cada um para o seu canto. Começaram a trocar emails diários. Mariana adicionou Júlio a sua lista de amigos no Orkut. Júlio adicionou Mariana a seus contatos no messenger. Passaram a bater papo todas as noites. Percebiam o quanto tinham em comum apesar de levarem vidas tão diferentes.
Júlio trabalhava na mercearia da família. Ia a pé para o trabalho e almoçava todo santo dia na casa da mãe, para onde também ia a pé. Quase nunca se lembrava de trancar o portão e gostava de andar a cavalo nos fins de semana.
Mariana trabalhava em uma firma de advocacia. Gastava 40 minutos para chegar até o trabalho de carro. Almoçava em um restaurante self-service e quando queria variar ia até o McDonald's. Andava sempre com o ar condicionado do carro ligado para poder fechar as janelas e se proteger da cidade. Gostava de ir ao cinema nos fins de semana.
Um dia Mariana convidou Júlio para passar o fim de semana em sua casa. Prometeu a ele que o levaria para conhecer a capital, os museus, os parques, os bares. Júlio topou.
Na primeira noite Júlio teve dificuldade para dormir. Mariana morava em um prédio alto no centro. O apartamento era bem pequeno. Fazia muito calor e o barulho que vinha da rua era intenso.
- Algum problema? - perguntou ela.
- Não. Só não tô acostumado com tanto barulho.
- Eu vou fechar a janela. É anti-ruído.
De fato, ao fechar a janela o barulho quase cessou. Talvez Mariana já estivesse acostumada por isso não havia pensado nisso antes. Mas Júlio ainda ouvia um barulhinho.
- O que é isso?
- O quê?
- Esse barulhinho. Será um grilo ou uma cigarra?
- Não. Acho que é a geladeira.
Riram e decidiram que não daria certo.

15.1.08

Homem de Areia

A duna parada. Tão grande e pesada. Imponente. Uma brisa leve. Um vento. Grãos que se movimentam. Se desgrudam do chão. Mais uma transformação. Grande ou pesado, nada é imutável.

Nem ninguém.

3.1.08

A Panela ou o Prazer

Ela estava sozinha em casa e decidiu fazer seu prato predileto: tutu de feijão. Se levantou do sofá e ainda hesitou. Pô, dá tanto trabalho. Mas resolveu que valia o esforço e rumou para a cozinha. Abriu a geladeira e viu primeiro a garrafa de coca. Encheu um copo. Estava meio sem gás, mas coca é coca. Deu uma goladinha feliz. Lembrou-se que havia feito feijão no domingo. Procurou o tupperware. Lá estava ele, o feijão, velhinho, perfeito para um tutuzinho.
Colocou a vasilhinha em cima da mesa e foi procurar os outros ingredientes: farinha para engrossar, uma salsinha, cebolinha e... não podia faltar uns pedacinhos de bacon.
Botou o feijão para cozinhar, colocou mais um bocadinho de água e deixou ferver. Pegou a estrela, velha ferramenta da cozinha mineira, e começou a esbagaçar os baguinhos.
E assim continuou acrescentando a farinha e os outros ingredientes, juntando também um pouquinho mais de tempero, de pimenta. Delícia, salivava.
Ficou pronto. Sentou à mesa e se fartou naquele banquete regando-o com coca. Depois do delicioso jantar, um cigarrinho e deitar em frente à televisão esperando o sono chegar.
No dia seguinte acordou e lembrou: a panela!
Foi até a cozinha e viu a panela seca, com os restos do tutu agarrado a ela, como um ex-amante que não pára de ligar.
O que tem que ser feito tem que ser feito. Catou a panela e colocou-a debaixo da torneira para amolecer o tutu. E esfregou e ariou e deixou tudo limpinho.
Muito trabalho? É, mas o sabor do tutu na noite anterior compensava tudo. E mal podia esperar para ter mais feijão de ontem na geladeira.
Sal e Água

Tem valor o pranto do amante? Tem sabor? O amante presente, mas sempre ausente e tão distante. Que lágrimas são essas?

Vai e chora. Derrama um rio. Eu rio. Cada gota é uma mentira. Os soluços, pura embriaguez. O seu peito não traz dor. Não traz afeto. Nem carinho. Não traz nada.

Poço vazio.
O Sonhador

O homem tinha um sonho. E sozinho ele sonhava. Só em seus sonhos soltos. Não se soltava. O sol se punha. Nada se somava. Até que, só, deu seu último suspiro. Fechou seus olhos. E sonhando se foi.

30.12.07

Só 7 Quilômetros

Não seria fácil levantar. Ângelo havia chegado às 4 da manhã. Como todo bêbado, estava otimista. Durmo 6 horinhas e levanto pra correr, havia pensado.
Acordou com o despertador e a cada apito, sua cabeça latejava. O aparelho tocou por quase um minuto até que Ângelo conseguisse alcançá-lo, se rastejando. Sua língua estava seca e grudenta. O gosto de sua boca era uma mistura de cigarro e saliva seca.
Com muita dificuldade abriu a gaveta do criado mudo e a vasculhou em busca de um Tylenol - colocado ali estrategicamente. Encontrou a cartelinha. Havia apenas 1 comprimido.
- Obrigado, Senhor!
Com mais dificuldade ainda se levantou. Estava só de cueca. Foi cambaleando, tropeçando, se escorando, até a cozinha. Segurava o comprimido com a mão fechada.
Abriu a geladeira e recebeu a primeira luz do dia. Seu apartamento havia sido planejado para ficar completamente escuro.
Na geladeira não havia muita coisa: 1 caixinha de leite, algumas frutas, 2 garrafinhas de água, algumas latas de cerveja e uma garrafinha de Gatorade.
Tacou o comprimido na boca e virou a garrafinha de isotônico. Enquanto o líquido descia gelado empurrando o comprimido esôfago abaixo, Ângelo pensava na noite anterior. Havia se divertido muito, bebido muito, dançado muito, fumado muito. Lembrava-se também de Natália. Conhecera a menina em um pub havia algumas semanas. Ela era linda: cabelos pretos e olhos de jabuticaba. Ela o impressionara com sua maturidade. Natália era 4 anos mais nova. Depois daquele dia haviam se encontrado algumas vezes e ela o havia convidado para um jantar entre amigos em sua casa. Ângelo congelara. Acabara de terminar um longo relacionamento e não pretendia se envolver tão rápido. Decidira então não ir ao jantar. Disse a ela que tinha um compromisso com a família, um aniversário, e que, infelizmente, não poderia ir.
Mas durante toda a noite, mesmo estando entre seus melhores amigos, só havia pensado nela. Pensava agora, cara, tá na hora de parar de fugir.
Nesse momento, o telefone tocou. Era Márcia, a amiga que o havia apresentado a Natália.
- Fala, Má.
- E aí? Como foi a balada ontem?
- Foi lôco.
- Pois é. Mas você dançou. A Natália beijou o Rodrigo, primo da Cláudia, ontem.
Pensou rápido. Não queria demonstrar a raiva que sentia.
- Ah...
- É. Mas ela disse que foi só um beijo. Que ele insistiu muito e acabou vencendo pelo cansaço.
- Sei.
- E aí?
- O quê?
- Não tá puto?
- Não , meu. Não temos nada um com o outro.
- Tá bom. Se esconde mesmo, meninão.
- Márcia, se liga. E deixa eu ir que eu vou correr.
- Tá certo. Vai lá. Beijo.
- Beijo.
Estava puto.
Abriu a persiana da sala esperando a luz do sol. O céu estava cor de chumbo. Abriu a janela e estendeu a mão para fora. Nenhuma gota, nenhuma desculpa: teria mesmo que correr. Vestiu-se e colocou o tênis. Antes de sair, checou o celular. Sem bateria. Conectou o aparelho na tomada e foi correr.
Sempre criava situações em sua mente para se incentivar a correr. Às vezes imaginava que receberia um prêmio milionário ao completar os 7 quilômetros. Outras vezes se via sendo recebido por uma multidão de fãs. E ainda havia ocasiões em que se imaginava desfilando em cima do carro do corpo de bombeiros. A música "Eye of The Tiger" também ajudava, mas só pensava nela no fim do trajeto.
Dessa vez, porém, não pensou em nada. Correu. Sentia suas pernas, cada passada, cada pisada, seu calcanhar pressionando a sola do tênis contra o asfalto. Percebia o peso de seus braços e o movimento de sua cabeça que pendia levemente para a direita devido a um pequeno desvio em sua coluna.
Ao concluir pouco mais da metade do percurso sentiu um pingo de chuva acertar sua cabeça. Pensou, tô fudido. Continuou correndo.
O pingo se transformou em chuvisco. O chuvisco rapidamente se convertou em um pé d'água. Não parou de correr.
Como toda chuva de verão, não durou muito. Mas Ângelo estava ensopado e continuou correndo até terminar os 7 quilômetros de sempre.
Chegou em casa e foi tirando a roupa. Planejava tomar um banho imediatamente, mas seu celular tocou.
Ao olhar no visor do aparelho o número que o chamava não era conhecido. Hesitou um pouco e acabou atendendo.
- Alô?
- Ângelo?
- Quem é?
- É a Natália.
Decidiu que não ia mais fugir. E nunca mais deixaria de correr.
O Corpo e A Mente

Ele sente
Ele vibra
Cada poro aberto
Cada pêlo enraizado

Ela planeja
Ela estuda
Cada neurônio ativo
Cada impulso controlado

Tudo se guia pelos sentidos
Dança, se movimenta
Leve e pesado
Não existe certo e errado

Tudo se guia pela razão
Administra, se detém
Forte e suave
Não existe certo no errado

No calor, se refresca
No frio, se aquece

Na necessidade, luta
Na riqueza, se poupa

Não faz contas
Sente até onde dá

Tudo no papel
Calcula até onde dá

"Quero ficar à toa
Deixo a vida me guiar"

"Quero ter o controle
Minha vida vou guiar"

"Não vivo sem dúvida
A graça do não saber"

"Não vivo sem certeza
O amanhã quero prever"

24.12.07

Desencaminho

Te reencontrar
Ontem ficou há não sei quanto tempo
Mas hoje ainda existe brasa
Assopro
Você me incendeia

Vivemos longe
Você aqui
E eu lá
E ainda tem mais

A cabeça nos segura
Nossos corpos quase se entregam
Alto lá!

Seus nós precisam ser desatados
Não há pressa
Nos descobrimos, redescobrimos
Na hora certa, tudo a seu tempo

21.12.07

Entra Em Mim

Seu olhar
Parece foi feito pra mim
E o meu nome
Soa tão bem na sua voz
Sou mais leve nos seus braços
Imensos abraços

O calor do seu corpo
Existe só pra me aquecer
E os seus pêlos, a sua pele
Te envolvem só pra me entorpecer

A sua boca
Os seus lábios e língua
Têm mais sabor na boca minha
Suas mãos e seus dedos
Que me exploram, me controlam

Nós dois juntos
Estou cansada e quero mais
Meu corpo molhado
Não é só transpiração
É inspiração

Por isso digo
Entra em mim
Entre gemidos
Entra em mim
Perco os sentidos
Entra em mim

Você é meu
E sua sou

20.12.07

Sujo

Unhas sujas
Tento escondê-las
São feias, grotescas
A poeira preta por baixo
Não quero revelá-las

Coloco as mãos no bolso
Cruzo os braços
Não há maneira
Elas acabam sempre aparecendo
E mostrando a sujeira que há em mim

19.12.07

Mais uma contribuição do meu querido André http://neuroghost.blogspot.com/:

Viajantes

Foste em viagem
E eu aqui permanecido
Como se tivesse ido…
Para dentro
E bem noto que o centro
De toda distância que se fez
Não é teu avião que partiu
Mas o "eu" mesmo que sumiu

Como se detalhasse os dias
A tua espera
Numa outra esfera
Também passada no estrangeiro
Este passageiro melancólico
Atônito, desatento de si
Exilado no país interior.

Foste embora por uns tempos
E eu aqui aos meus relentos
Mais distante de mim
Que tua distância do Brasil.


Distância

O amor é feito de distâncias
Vai longe quando perdido
Mas tão próximo se ampara
Quando vivido
Que nem distância permanece

Ausente
O apaixonado se esquece que um dia…
Um dia ele próprio existiu
Neste ponto então,
Só existe o amor sem distância
Entre ele…
E o corpo da amada.
Somos Comida

Não adianta
Pode passar creme
Fazer drenagem linfática
Passar a semana no SPA
Você sempre será o resto do que você foi um dia
Espero que você goste de "mexidão"

18.12.07

Terrorista Emocional

Lembro-me com carinho de cada uma das minhas 6 ex-mulheres. E lembro-me com muita clareza o que fez cada uma delas desistir de mim. A minha grande sorte sempre foi o meu charme inicial. Cativo sempre ao primeiro olhar, no primeiro bate-papo, no primeiro beijo, na primeira transa. O meu trunfo é a capacidade de me adaptar a cada uma delas. Porém, como disse alguém, o seu ponto forte é a sua fraqueza. E a minha é exatamente essa. Posso esmiuçar os detalhes de cada fim de relacionamento. Mas com certeza a minha inconstância (ou a minha adaptabilidade a novas situações) foi, certamente, ponto comum em todos os fins.
A primeira foi Priscila. Éramos muito jovens. Não éramos mais virgens, no entanto. Estávamos na faculdade. Acho que cursávamos o segundo ano. Acabávamos de descobrir o prazer do sexo livre e queríamos agora algo mais profundo. O fato de já sermos grandes amigos com certeza contribuiu para que acabássemos nos unindo nos laços nem tão sagrados assim do matrimônio. Sempre acreditamos, e, realmente, ainda acredito, que um casamento deveria ser baseado em bom sexo acompanhado de muita conversa. Mas, como já disse, éramos jovens demais e não estávamos preparados para as peças que a vida prega na gente. Eu com meus 22 anos, no auge de minha libido perturbada, não poderia esperar ser fiel a Priscila, por mais redondos que fossem seus seios perfeitos, por mais lourinhos que fossem seus pêlos pubianos, por mais rosados e doces que fossem seus mamilos, por mais suculenta que fosse sua bocetinha. Uma frase que repetirei sempre, e que como vai perceber, amigo leitor, não é minha, nem de ninguém, é de todos: se eu soubesse naquela época o que sei hoje... Na verdade, não adiantaria nada. Eu não pensava ainda com a cabeça de cima. E perdi Priscila comendo sua priminha do interior que havia vindo passar as férias conosco.
A segunda foi Renata. Também na faculdade. Nos conhecemos em uma festa. Era uma grande amiga de um grande amigo de Priscila. Estávamos em uma rodinha de amigos fumando maconha, quando isso ainda não era politicamente incorreto, ou pelo menos ainda não achávamos que era, que isso fique bem claro. E numa das voltas que o baseado deu, segurei sua mão. Eu juro por Deus! Acreditei ter encontrado a mulher da minha vida ali. O toque de sua mão na minha me fez arrepiar inteirinho - e o fato de ela não estar usando soutien naquele dia também ajudou. Renata era muito madura. E quando eu decidi largar a faculdade para abrir um bar próximo à universidade, a pretexto de ser fiel aos meus ideais, fez com que ela simplesmente se desinteressasse por mim. Senti muito sua falta, mas a cerveja me fez esquecê-la rapidamente e me trouxe Vera.
Vera era como eu. Adorava beber de segunda a segunda. Adorava trepar. Nos conhecemos no bar, obviamente. Nessa época eu já me preparava para fechá-lo. Já havia percebido o quão estúpido havia sido ao largar a faculdade. Na última noite em que o bar ficou aberto comi Vera em cima do freezer. E nos apaixonamos. Fiquei com ela até me formar. E daí nossos caminhos se transformaram. Ela continuou sendo de esquerda e eu me encantava com o neo-liberalismo defendido por minha chefe no escritório. Também me encantava com suas cruzadas de perna.
Minha chefe (nunca a palavra "minha" foi tão bem empregada) era mais velha, mais madura, divorciada. Me sentia um menino de novo com o quanto aprendia com ela sobre análise de mercado e kama sutra. Mas ela era séria demais. E no dia em que não consegui mais achar graça na sua carranca conservadora, ela percebeu a minha volatilidade. Me deixou antes que eu a deixasse. Melhor assim. Terminar relacionamentos nunca foi o meu forte. Acabar com eles sim. Destruí-los. Vê-los agonizar. Essa sim é a minha especialidade. Nunca acreditei em esforço para manter um relacionamento. Afinal, cresci assistindo filmes de Hollywood. Não se poderia esperar algo diferente de mim. O que me leva a Carolina.
Eu já com quase 30 anos pensava que havia chegado a hora de amarrar a coleira. E havia mesmo. Mas eu ainda não estava pronto. Talvez nunca esteja.
Conheci Carolina em uma viagem de férias. Minha primeira vez na Europa. Trombei com ela em uma badalada balada, badalada balada, badalada balada em... Barcelona. A princípio eu não tinha a menor intenção de beijá-la. Acho que ela também não. Estávamos os dois tão carentes de brasileiros - imagine, eu estava havia apenas 2 dias na Espanha - que só queríamos conversar sobre política, feijoada, pão de queijo e guaraná. Não que ela não fosse bonita. Era linda! Perfeita! Mas não foi isso que nos uniu a princípio. Foi simplesmente o prazer de conversar com alguém que falava sua língua. Alguém que entendia as piadas que você fazia. Alguém que tivesse algo em comum. E o tempo que passamos juntos na Europa foram os melhores 6 meses da minha vida. As conversas eram fantásticas. Falávamos de tudo: antigos casos, unha encravada, decoração, machismo, feminismo. O sexo era perfeito: nem filme pornô, nem novela das seis. Mas ao regressarmos ao Brasil, eu então com 29 anos, em pleno retorno de Saturno, comecei a reavaliar tudo. Reavaliava a minha vida pessoal, a minha vida profissional, mas não tomava decisão alguma em relação a nada. Simplesmente não conseguia. Meu terapeuta diz que eu não queria tomar decisões. Essa foi a maneira que encontrei, ainda segundo meu terapeuta, de sabotar mais um relacionamento. E eu dizia: não! A culpa é da minha mãe.
Quando cheguei nos 30, finalmente uma decisão. A de não mais me envolver se não fosse para sempre. Devo ter ficado solteiro por umas duas semanas, até conhecer Giovana. Entre Carolina e Giovana houveram outras por quem me apaixonei, mas não tão importantes como aquelas que considero minhas 6 ex-mulheres.
Giovana talvez tenha sido a mais importante. Ou talvez eu tenha essa impressão por ela ter sido a última. Nos conhecemos no trabalho. Como eu já disse, havia decidido ficar solteiro. Então, qualquer mulher que começasse a conversar comigo, passaria a ser tratada como uma freira. Sempre tive umas fantasias meio sacanas, sabe? O fato é que conviver com uma mulher bonita e inteligente diariamente sem nunca tê-la fodido vai contra a minha natureza. Pensava que Giovana não seria a primeira. Era casada à epóca. Ou melhor, morava junto, o que dava no mesmo. E estava cada vez mais desgastada pelo relacionamento. Aparentemente seu marido era apenas uma versão piorada de mim mesmo. Um pouco mais jovem, mais afoito, ainda não muito experimentado na arte de tornar uma mulher completamente satisfeita.
Sim, eu sei fazer isso. Mas me saboto. Já nem sei mais se faço isso inconscientemente, como afirma meu terapeuta, numa tentativa infantil de frustrar os planos de ter netos de minha mãe, ou se o faço deliberadamente.
Fato é que convivendo com Giovana diariamente tinha eu todas as oportunidades de mostrá-la o quanto eu era interessante se comparado ao cara com quem ela dividia o mesmo teto havia quase 3 anos. Eu era o cara bem sucedido que ela acabara de conhecer. Representava o novo com tudo que há de positivo nessa palavra. E também ficou muito fácil pra ela, com aquele sorriso de musa, aquele rosto de atriz de cinema, aqueles seios perfeitos, me convencer a abandonar os planos de ser solteiro.
Giovana tinha seu apartamento. Eu tinha o meu. Mas insistimos em morar juntos imediatamente. Fomos morar no dela. Pulamos algumas etapas importantes para a construção de um relacionamento saudável. Claro, tudo isso é um blá-blá-blá pré-fabricado. Estou racionalizando uma questão para mais uma vez fugir do fato de que na verdade sabotei o relacionamento. Morar com ela era muito fácil. Ela cuidava de tudo. Eu simplesmente sentava no sofá. Àquela altura eu já não podia imaginar que separaria mais uma vez. Já estava até pensando em ter filhos. Mas Giovana era forte demais pra deixar se levar em um relacionamento nitidamente sem futuro. Não seria o fato de ela ter mais de 30 que a faria aceitar qualquer um. E isso só me faz admirá-la mais.
Ela finalmente me botou para fora da casa e da vida dela há duas semanas.
E cá estou eu, escrevendo esse diário, como me recomendou meu terapeuta, esperando minha próxima vítima.

17.12.07

Esperando

Raquel havia decidido usar seu horário de almoço naquele dia para ir ao banco. Havia recebido um bônus do escritório por ter sido escolhida a funcionária do mês. A grana extra, e inesperada, era muito bem vinda. Porém, Raquel reavaliava se era mesmo uma boa idéia trabalhar desse jeito. Ela estava agora à frente de 3 projetos no escritório, trabalhando com 5 equipes diferentes. Ela nem conseguia conversar com suas equipes pessoalmente. Tudo era feito via e-mail. Assim como fazia com seu marido e suas duas filhas. Precisava acreditar que aquele esforço compensava, mesmo não tendo tempo de fazer as unhas e pintar os cabelos. O problema era entrar no elevador, a única hora em que se via no espelho, e perceber os fios grisalhos, como penetras em uma festa: poucos, mas insistentes.
O bônus havia sido pago em cheque e Raquel pretendia usar sua quase uma hora de almoço para sacar o dinheiro e depositar a grana em sua conta. Não queria esperar os dois dias que o cheque demoraria para ser compensado. Raquel não esperava nem elevador. Quantas vezes já não havia subido, ou descido, os 8 andares do escritório só para não ficar parada. Além disso, aquilo dava a ela um certo alívio, deixava sua consciência mais tranqüila: estava se exercitando.
Por volta de uma da tarde, Raquel pegou sua bolsa e, já que o elevador estava em seu andar, não desceu pelas escadas. Ao chegar no térreo o acensorista lhe disse que precisava sair do elevador ali. Havia uma suspeita de vazamento de gás no subsolo, onde ficava a garagem, e o único jeito de chegar até seu carro seria passando por fora do prédio e entrando pelo portão automático por onde entravam os veículos.
- Conversa com o segurança na saída do prédio. Ele abre o portão pra senhora entrar na garagem.
Raquel passou rapidamente pela mesa onde ficavam os dois seguranças responsáveis pelo controle de entrada de pessoas no prédio. Eles disseram a ela que assim que a avistassem no monitor, abririam o portão. Raquel pensou, vou ter que esperar esses dois me perceberem lá. Pensou que perderia preciosos segundos.
Ao chegar ao início da rampa que descia para a garagem, percebeu como ela era íngrime. De dentro do carro não se notava. Percebeu também que um carro acabara de sair da garagem e o portão começava a se fechar. Se eu correr, eu pego o portão aberto, pensou.
A distância entre o início da rampa e o portão era só de uns 50 metros. Mas a inclinação e o fato de estar calçando sapatos de salto alto talvez houvessem desencorajado outras pessoas. Mas não Raquel. Partiu numa corrida cambaleante enquanto o carro subindo a rampa piscava os fárois enquanto subia em sua direção. Raquel desviu-se do retrovisor com muita agilidade enquanto soltava um sonoro palavrão. Quase em frente ao portão percebeu que a abertura não seria suficiente para sua altura. Então, fez o impensável: se jogou no chão e rolou por baixo do portão enquanto ele se fechava.
Seus joelhos ardiam muito, assim como as palmas de suas mãos. Seu sapato direito estava a uns 5 metros de seu corpo e a alça de sua bolsa havia se rasgado. Se levantou batendo as costas das mãos contra a saia, antes branca e agora coberta por uma poeira negra.
Como sempre fazia, passou direto pelo manobrista com um simples aceno de cabeça. Não conseguia esperar que ele buscasse o carro. Dessa vez, no entanto, percebeu que ele se segurava para não rir após assistir àquela cena digna de um filme de ação.
Entrou no carro e nem precisou esperar pelo portão. Já havia sido aberto.
A uns 16 quarteirões dali estacionou o carro. Estava, finalmente, em frente ao banco. Desceu um pouco atrapalhada. Pensava na reunião que teria às 2 horas e imaginava se sua secretária teria se lembrado de todos os preparativos.
Ao entrar no banco, percebeu que a fila estava bem curta. Fez o sinal da cruz. Porém, ao colocar a mão dentro da bolsa, notou que o cheque não estava lá. Lembrava-se de ter colocado ele dentro da bolsa. Estava solto, mas estava dentro da bolsa. Não tinha tempo para conjecturar, decidiu passar na padaria da esquina e comer uma coxinha. Não podia mais perder tempo.
Ao chegar de volta ao estacionamento do escritório e parar o carro, o manobrista veio a seu encontro:
- A senhora deixou cair esse cheque e esse batom quando deu aquele rolamento ninja na entrada da garagem.
- Ah, obrigado!
E foi para o elevador, agora liberado, meio enrubescida. Decidiu que participaria da reunião e sairia imediatamente para pegar o banco ainda aberto. Daria tempo.
Como havia planejado, houve tempo para a reunião e ainda para um bate-papo rápido com seu chefe sobre algumas coisas que ainda precisavam ser acertadas. Saiu rapidamente e em menos de 15 minutos estacionava na porta do banco novamente.
Para a sua satisfação, a fila ainda estava bem curta e foi atendida antes de completar a segunda ligação para sua secretária. Pegou a grana e foi se dirigindo para a porta. Assim que passou pela porta, um rapaz se aproximou:
- Moça, a senhora tem horas?
- Quatro e quinze.
- Hora de passar a grana pra cá.
Raquel não acreditava naquilo. Depois de todo o sacrifício para tirar o maldito dinheiro vinha uma filho da puta e a roubava. E o cara nem tinha se dado ao trabalho de esperar na fila.
Pensou em todo o tempo que havia gasto nos projetos, no tempo que poderia ter passado com sua família, nos dois anos seguidos sem férias.
Decidiu conversar com seu chefe. Tiraria férias assim que concluísse seus projetos. Sem desculpas, sem adiamentos.
E tinha que falar com ele agora. Não podia esperar mais nem um segundo.

15.12.07

A Estante

Tadeu estava enlouquecido com a tese de mestrado. Quanto mais lia a respeito do tema, mais sua pesquisa aumentava, e encontrava outro viés, e mais outro, e mais outro... Resolveu ligar para seu orientador.
- Alô!
- Professor? É o Tadeu.
- Tudo bem?
- Tudo. E com o senhor?
- Tava. Até você me chamar de senhor. Já te falei.
- Foi mal. Bom, eu tava querendo perguntar se o senhor... ou melhor, se você tem mais algum material ou alguma fonte que possa me ajudar lá na tese. Tô ficando meio perdido.
- Tá tendo dificuldade de cercar o tema, né?
- É. É bem por aí.
- Por que você não vem até a minha casa. Talvez você encontre alguma coisa na minha biblioteca.
- Não quero te atrapalhar.
- Imagina. Mi casa, su casa.
Tadeu achou meio estranho o tipo de ajuda oferecida pelo professor. Mas não estava em condições de julgar nenhum tipo de auxílio. Muito menos estava em posição de recusar qualquer coisa que fosse. Juntou suas coisas na mochila e foi para a casa de seu orientador.
Tadeu já havia estado ali em outras ocasiões. Uma vez para receber orientações, quando o professor tinha estado doente e tinha se ausentado da universidade por algumas semanas. Em outras duas ocasiões, havia estado lá para duas festas organizadas pelo professor. No entanto, nunca havia entrado na tal biblioteca. Nem mesmo sabia que ela existia. Sempre imaginava que o professor tivesse um enorme acervo de livros na área, mas nunca algo tão amplo que pudesse ser chamado de biblioteca.
A casa era bem grande e arejada. A porta de entrada dava para uma sala de estar enorme com um sofá em "L" e vários outros móveis. Uma televisão de plasma coroava a decoração. O professor o recebeu na sala. Vestia apenas um robe e tinha uma taça de vinho branco nas mãos. Tadeu achou um pouco estranho, mas pensou, bom, é domingo e o pobre homem também é filho de Deus.
O professor sorria muito enquanto guiava Tadeu até a biblioteca. Falava sobre os quadros na parede, comentava a decoração da casa... Tadeu apenas o seguia e ia respondendo com monossílabos as perguntas trivais que aqui e ali o professor o fazia.
- Bem, é aqui.
O professor abriu duas portas pesadas de madeira que ficavam no final de um corredor. A biblioteca na verdade era um escritório. Havia uma enorme mesa de madeira no centro, com uma cadeira bem alta. Esta mesa estava coberta de papéis com anotações que Tadeu mal conseguia decifrar. No canto direito havia uma outra mesa com um computador e à esquerda um aquário imenso com um único peixe dourado. Tadeu pensava na ironia que era ver aquele peixe, cuja memória mais antiga datava de menos de 5 segundos atrás, nadando sozinho naquele infinito de água. No fundo da sala havia uma enorme estante de livros. O pé direito da casa era bem alto, e a estante ia do chão até o teto, de ponta a ponta da parede recheada de livros. Próximo a porta de entrada, havia um sofá de dois lugares.
O professor entrou na frente de Tadeu e se sentou no sofá. Colocou a taça de vinho sobre uma mesinha de canto que havia ao lado do sofá e ajeitou o robe, como se este fosse um traje de gala.
- Bom, acho que você deve encontrar algo de útil aqui. Se não se importa, ficarei aqui com você enquanto procura. Esta sala tem um valor muito alto pra mim e não gosto de deixar ninguém aqui dentro sem que eu esteja junto.
- Claro. Não tem problema algum. Só não queria te atrapalhar em nada, nem interromper o seu descanso.
- Não se preocupe. Eu não tenho nada para fazer hoje mesmo. Enquanto você estuda, vou ler um pouco. - e pegou um livro que estava no chão, perto do sofá.
Tadeu finalmente encarou a estante. Era realmente gigantesca. Assustava só de olhar. Começou a zanzar de um lado para o outro lendo o que havia escrito nas capas dos livros. Tudo parecia ser útil e pensava, se houvesse uma maneira de eu simplesmente sugar toda a informação da cabeça do professor... Tadeu pensava que, obviamente, o professor teria lido todos aqueles livros. Além disso, conhecia a tese de Tadeu como ninguém. Provavelmente, conhecia-a melhor do que o próprio Tadeu. Por que ele simplesmente não sugeria um autor, um volume?
Tadeu olhava e olhava para a estante e simplesmente não conseguia decidir que exemplar puxar de lá. Pensava que deveria decidir rápido. Não queria tomar muito tempo de seu orientador. Mas ao mesmo tempo achava que seria julgado pela escolha que fizesse. Se eu pegar o livro errado, ele pode desistir de me ajudar, pensava. Arriscou uma olhadela por cima do ombro. Queria ver se o professor estava lendo de verdade ou se apenas o observava com seus olhos de juíz. O professor parecia bem absorvido pela estória.
Tadeu voltou-se novamente para a estante. Foi e voltou umas duas vezes até o final da parede coberta de livros até que viu algo que chamou sua atenção. O problema é que o livro estava na parte mais alta da estante. Não havia nenhuma escada à vista. A cadeira próxima a mesa tinha um estofado de couro impecável que realmente não combinava com sapatos sujos. Antes que tivesse alguma idéia ou criasse coragem para interromper o professor e perguntar como ele alcançava os livros mais altos, ouviu o homem dizer:
- Tadeu, preciso ver meu almoço. Quase me esqueci. Estava assando um peixe. Já volto.
Tadeu pensou, é minha chance. Primeiro pensou em tirar os sapatos e usar a cadeira mesmo. Mas previu que, mesmo descalço, seu peso deixaria marcas naquela cadeira tão sofisticada. Então decidiu usar a mesa. Agarrou-se a ela e tentou puxá-la para perto da estante. Mas a maldita mesa pesava toneladas e o máximo que conseguiu foi movê-la alguns centímetros ao preço de um barulho irritante de madeira atritando com madeira. Deixou um pequeno arranhão no assoalho. Sua idéia não daria certo. Precisaria de pelo menos mais uma pessoa para ajudá-lo a aproximar a mesa da estante. E ainda assim achava que o estrago no chão seria grande.
- Merda!
Tentou trazer a mesa de volta para o lugar. Gotas de suor começavam a brotar em sua testa e suas costas. Nem tanto pelo esforço físico, mas pelo nervosismo.
Olhou para a estante mais uma vez e percebeu que as prateleiras eram bem grossas. É minha única saída, pensou. Tirou o sapato do pé esquerdo e o colocou na segunda prateleira, mais ou menos na altura de seu joelho. Deu um impulso e se agarrou à prateleira mais alta com as duas mãos enquanto seu pé direito ficou no ar, tentando dar equilíbrio. Se esticou um pouco para a direita, tentando alcançar o livro e ouviu um rangido. Estancou. Nenhum movimento por parte da estante. Prestou atenção aos ruídos da sala para perceber se o professor se aproximava. Silêncio completo. Novamente, se esticou para a direita e ouviu outro rangido. Antes que pudesse se soltar da estante, ela pendeu para a frente e desabou, sobre Tadeu e sobre a mesa. Tadeu bateu as costas com força no chão. A estante teve sua queda interrompida na altura da mesa, mas centenas de pesados volumes caíram sobre o rapaz. Tadeu tinha a impressão de estar presenciando um terremoto, pelo barulho e pelos golpes que recebia de cada livro que acertava sua cabeça, seus braços e seu tórax. Tudo aconteceu muito rápido, mas para Tadeu os livros pareciam ser infinitos. Esperou tudo que havia para cair terminar de cair.
Tadeu sentia dor por todo o seu corpo. Começou a se mover embaixo da montanha de livros. Finalmente se desvencilhou de todos os obstáculos. Sua cabeça doía e ao passar os dedos entre os cabelos, percebeu que um pequeno galo se formava.
Ao se colocar de pé, analisou o estrago. A estante parecia intacta, mas os papéis em cima da mesa haviam se espalhado pela sala. A mesa havia se movido e deixado quatro riscos atrás de cada perna.
Virou-se para a porta e viu o professor parado observando tudo.
- Eu sinto muito, professor.
- Deve mesmo.
- Eu arruinei tudo.
- Não. Você pode encarar as coisas dessa forma, mas olhe em volta. Você simplesmente derrubou uma estante. Ela caiu sobre seu corpo. Tomou um susto e foi só. Mas você ainda está vivo. Os livros ainda estão aí. Pare de choramingar. Sacode a poeira do corpo e coloque tudo de volta no lugar.
Tadeu abaixou os olhos e foi arrumar a bagunça.